Pessoas Incluindo Pessoas

EP 09 – A invisibilidade de indígenas com deficiência

No nono episódio do podcast "Pessoas Incluindo Pessoas", Flávia Cintra, Arthur Calasans e Val Paviatti recebem Siana Leão Guajajara para uma conversa fundamental sobre a invisibilidade e a luta por direitos das pessoas indígenas com deficiência.

Siana, mulher indígena do povo Guajajara Tentehar, ativista e pesquisadora, compartilha sua trajetória marcada pela paralisia cerebral e pela busca por pertencimento. Ela nos guia por uma reflexão profunda sobre os desafios de existir na intersecção de duas lutas que raramente dialogam: o movimento anticapacitista e a causa dos povos originários.


Este episódio é um convite para ampliar nosso olhar, reconhecer a diversidade dentro da própria diversidade e entender por que a inclusão só será completa quando alcançar todos os territórios e todas as identidades.

Da Aldeia ao Ativismo: A Jornada de Siana

Siana narra sua infância entre a aldeia, no Maranhão, e a cidade, em uma busca por tratamento que uniu os saberes ancestrais de sua avó pajé e os recursos da medicina. Ela relembra como a superproteção da comunidade a fez crescer sem a percepção da deficiência, um despertar que só chegaria na adolescência, junto a grandes perdas pessoais. É a partir da memória de luta de sua mãe, uma cacique, que Siana reencontra sua força no Acampamento Terra Livre (ATL) e transforma sua presença em um ato político, afirmando seu lugar como mulher indígena com deficiência na linha de frente do movimento.

"Minha Deficiência Não Me Faz Menos Indígena"

Um dos pontos altos da conversa é a história por trás da tirinha que viralizou na internet, com a frase que se tornou um lema para Siana. Ela explica como o capacitismo se manifesta dentro e fora das comunidades e como a falta de representatividade a impulsionou a criar suas próprias narrativas. A discussão aborda a importância de ter referências e de ocupar espaços para que outras crianças e jovens indígenas com deficiência possam se ver e entender que seus futuros são possíveis e potentes.

O Abandono Institucional e a Luta por Direitos

A conversa expõe a precariedade e a negligência do Estado. Siana detalha a falta de dados sobre a população indígena com deficiência, a ausência de políticas públicas eficazes de saúde (SESAI) e de educação inclusiva nas aldeias. Sua pesquisa acadêmica nasce justamente dessa lacuna, da necessidade de entender por que direitos básicos não chegam aos territórios. A luta, portanto, não é apenas por visibilidade, mas por acesso, permanência e dignidade.

Card de divulgação do podcast Pessoas Incluindo Pessoas, EP 09: A invisibilidade de indígenas com deficiência, com Siana Guajajara.

Pertencimento e Ancestralidade: O Custo da Inclusão

Siana compartilha uma das dores mais profundas de sua trajetória: para ter acesso à educação e buscar autonomia, ela precisou se afastar de sua comunidade, o que impactou sua fluência na língua materna e sua conexão com as práticas culturais. O episódio levanta uma questão crucial: que tipo de inclusão é essa que exige o rompimento com a própria identidade? A fala de Siana é um chamado para a construção de um futuro onde nenhuma criança precise sair de sua base para poder estudar e se desenvolver.

Ouça o EP 09 – A invisibilidade de indígenas com deficiência

Prepare-se para uma conversa que desafia o silêncio e celebra a resistência. Ouça agora, compartilhe e junte-se a nós nessa luta por uma sociedade mais inclusiva e consciente!

 

Acesse todos os episódios completos em Podcast Pessoas Incluindo Pessoas. Ouça também no Spotify.

Leia a transcrição da conversa

Podcast Pessoas Incluindo Pessoas  - Segunda temporada - Episódio 09

Instituto Paradigma

 

 

“Pessoas Incluindo Pessoas”

 

 

Episódio 9

 

 

Convidada

Siana Guajajara

 

 

 

Flávia Cintra

 

Olá, esse é o “Pessoas Incluindo Pessoas”, o podcast do Instituto Paradigma.

Eu sou a Flávia Cintra, uma mulher branca de olhos e cabelos castanhos. Uso óculos de armação preta, modelo aviador. Estou vestindo uma camisa marrom, estou sentada aqui na minha cadeira de rodas com os meus colegas de jornada para mais um papo interessante que você não pode perder hoje.

Começando com Arthur Calasans. Boas-vindas!

Tudo bem, Arthur?

 

 

Arthur Calasans

 

Olá, eu sou Arthur Calasans. Sou um homem branco, tenho barba e cabelo grisalho, estou vestindo uma camiseta preta e uma calça preta. Vou passar a bola para minha amiga Val Paviatti. Oi Val, tudo bem?

 

 

Val Paviatti

 

Olá pessoas, muito bom estar com vocês em mais um episódio de “Pessoas Incluindo Pessoas”. Eu sou o Val Paviatti, uma mulher de pele branca, cabelos e olhos castanhos, uso óculos. Hoje estou vestindo um cachecol, uma camisa preta e uma jaqueta jeans.

A nossa convidada, ela é uma mulher indígena do povo Guajajara Tentehar.

Ativista e defensora dos direitos das pessoas indígenas com deficiência. Ela tem dedicado sua trajetória à luta pela visibilidade e inclusão dessa população, ampliando o diálogo entre os movimentos indígenas e de pessoas com deficiência.

Com sua voz firme e sensível, ela nos convida a enxergar a diversidade dentro dos próprios povos originários e a reconhecer o protagonismo das pessoas com deficiência na construção de um país mais justo e plural.

Seja bem-vinda, Siana Guajajara!

 

 

Siana Guajajara

 

Muito obrigada Val!

Oi gente, me chamo Siana Guajajara, é uma honra estar aqui, principalmente porque, quando me fizeram o convite, Arthur ainda fez a propaganda que seria ao lado de Flávia Cintra. E para mim é uma honra, porque cresci vendo essa mulher na televisão, e desde criança, sempre foi uma referência para mim e, estou muito emocionada. Desde criança ficava vendo, ficava uau! E eu ficava, “mãe, olha, tem uma mulher que ela é deficiente, ela é jornalista!”, e a minha mãe ficava assim, “ué, mas existe pessoas com deficiência que são jornalistas, são médicos e você futuramente pode ser uma delas!”.

Vou fazer minha autodescrição, sou uma mulher indígena, do povo Tentehar Guajajara, totalmente fora dos padrões do que se espera de uma pessoa indígena. Tenho cabelos cacheados, castanho escuro, tô vestindo uma camiseta preta, uso óculos de grau, a armação quadrada e, também estou usando um colar de sementes, e também tô usando brincos do meu povo, que é de penas de arara verde, e uma pulseirinha também de miçanga também verde.

Eu tenho paralisia cerebral e sou estudante de Letras, Língua Portuguesa. Também sou pesquisadora na educação Inclusiva no Instituto Federal de Brasília, Marimba, Paraíba e Goiás. E sou uma mulher de pele, um marrom, é, marrom clarinho, um pouquinho. Acho que é isso.

 

 

Flávia

 

Que bom ter você com a gente Siana, o orgulho e a honra é todo nosso.

E você começou falando de uma coisa super importante que é a representatividade. É a gente poder se ver em lugares que a gente quer conquistar. E você criança, me vê trabalhando e de alguma maneira entende que é possível, que se foi possível para mim, é possível para você. E é possível, e a gente trabalha para que seja possível para qualquer pessoa.

Me fala um pouco da sua infância, da sua origem, e se você, e a sua percepção de representatividade. Como você via as mulheres indígenas adultas quando você era criança?

 

 

Siana

 

Bom, Flávia, eu vou ser bem franca com vocês, assim, eu, quando eu era criança…  a Siana ela vem, eu vou começar um pouquinho assim, lá atras! A Siana ela vem, primeiro, lá da aldeia dela que não tinha perspectiva de nada. Porque eu não andava, e todo mundo ficava, “por que essa menina não anda? Tem alguma coisa”. Porque todo mundo andava, todo mundo progredia e eu não, e eu não. Fazia um ano, fazia dois e eu não andava.

 

Siana

 

Eu nasci em Araguaína, Tocantins, e depois a minha mãe migra ali para a aldeia, ela retorna para aldeia dela no Maranhão.

E quando ela retorna é quando ela me leva ao médico. E o médico começa a ter um direcionamento de encaminhar minha mãe para Vila Sarah Kubitschek.

E naquele tempo era questão de, de orelhão, de tá ligando e tal para o Sarah. E foi quando ela começou. Até ajuda, entre aspas, e muitas aspas, falando, da saúde indígena, que sempre foi muito precária, porque embora as pessoas digam, “ah, mas o indígena, a SESAI cuida dele”, não. Sempre a gente, sempre foi muito tutelado pela Funai, e a gente sempre foi muito tutelado pela SESAI. Mas essas tutelas, elas nunca nos representaram de fato. Elas nunca de fato nos falaram por nós. Minha mãe sempre foi atrás dizendo, que minha mãe nunca foi para uma escola. Minha mãe nunca nem terminou a capacitação. Só que ela sempre teve boca para falar, entendeu? Ela dizia, “eu nunca, nunca terminei uma escolaridade, mas as minhas filhas vão terminar e a Siana também vai para a escola”.

Foi quando ela conseguiu a vaga no Sarah Kubitschek, e ela passou um mês comigo. Eu comecei o tratamento e só com três anos eu tive o diagnóstico de paralisia cerebral.

E nisso, a minha família em si, dentro da aldeia me acolheu. Mas só que a gente via aqueles olhares, sabe, meio de preconceito, meio de tipo assim, “ué, mas por que que ela é assim? Ah, mas porque Siana não anda ainda”.

E foi quando a minha avó, juntamente com minha mãe, e também toda aquele amparo ali de médicos. Só que eu cresci nesse âmbito, entre a cidade e a aldeia. Porque a minha mãe percebeu, se eu continuar só aqui dentro, a minha filha não vai ter progresso.

Então elas foram para a cidade comigo, e final de semana a gente ia para aldeia, porque também a minha mãe não queria perder esse contato, porque a minha mãe passou 13 anos fora da aldeia dela, e quando ela retornou ela disse “não, minhas filhas vão crescer dentro da aldeia, mas também tendo esse contato com a cidade”. E quando foi nesse processo para eu começar a andar, minha avó ensinou para minha mãe o seguinte, a gente vai sim acatar o que o médico tá falando para vocês, só que a gente vai usar também o que a gente aprendeu do mato. Porque minha avó era pajé! A minha avó era pajé, e ela disse o seguinte, “a gente vai pegar a casca do bacuri, e aí a gente vai extrair esse óleo, e a gente todo dia a noite vai passar nas pernas da Siana, por quê, porque ela ainda é criança e os ossos dela vai amolecer. E a gente vai fazer massagens, todo dia de noite, e a gente vai cobrir as pernas dela com uma meia, e de manhã e a gente vai colocar ela para andar. Tudo que o médico lá em São Luís te ensinar a gente vai fazer”. E com o tempo, Flávia, eu comecei a andar!

Sendo que as pessoas diziam que eu não ia andar, eu só me arrastava. Aí a primeira vez que eu andei também foi dentro do Sarah, com o andajar. Aí foi quando eu…

 

 

 

 

Flávia

 

E que idade você já tinha?

 

 

Siana

 

Eu acho que eu tinha ali por volta de quatro para cinco anos. Só que eu caía muito.

Aí foi quando eu comecei a usar as órteses também. Só que aquilo esquentava demais! E aquilo esquenta muito, e lá no Maranhão é muito quente.

Então, e também eu era filha caçula, então assim, imagina só, todo mundo tava lidando com aquilo tudo muito novo, então todo mundo só fazia o que eu queria. Então, tanto que até hoje eu tenho um padrinho que ele diz, “você, era para você estar melhor, você tá bem, mas era pra você tá melhor, porque você não usou a órtese direito, e não sei o que, e não sei que lá! Sua mãe, sua vó e seu vô só fazia o que você queria”.

Mas é nesse sentido, sabe? Então…

 

 

Flávia

 

Do cuidado, né?

 

 

Siana

 

Isso!  

E também, é porque eu fui superprotegida demais, porque a minha aldeia no geral, eles cuidaram demais de mim.

Então, assim, eu sempre fui muito protegida demais. Então, quando eu ia para as outras aldeias, eles me olhavam com um jeito meio ríspido, mas dentro da minha aldeia, por mim eu corria, eu brincava, por, hoje em dia eu não corro mais, eu não ando como antigamente. É por isso que quando eu era criança, eu não entendia quando as pessoas me chamavam “olha lá, aleijada, olha lá, não sei o que”. Eu ficava, “ué? Mas eu ando como essa pessoa, mas eu corro como essa pessoa, não entendo”.

Minha cabeça funcionava assim. Eu não entendia, por que eu corria, eu brincava, eu, a única coisa que eu não fazia, porque eu não aprendi, foi a andar de bicicleta, mas é porque eu realmente não quis!

 

 

Val

 

Siana, ainda falando um pouquinho da sua infância, pelo jeito que foi muito ativa. Como era o relacionamento da Siana, com deficiência, com as crianças da aldeia?

 

Siana

 

Meu avô ajudou a fundar cinco aldeias, mas ele nunca quis ser cacique, porque ele dizia que era muita responsabilidade.

Então, os primos, sempre brincava com as primas.

Então, tinha um açude lá, que toda vez a gente ia, e ia brincar, e a mãe dizia, “não vai banhar em tal açude, porque lá nesse açude tem jacaré”. Até hoje a gente não sabe se tem jacaré ou não. Mas a gente sabia que nesse açude era de onde a gente tirava a água pra tomar banho e para beber.

Enfim, às vezes a gente ia também, tipo, brincava mesmo, normal assim, sabe? Só que era aquilo, quando, eu só ia se minha irmã fosse. Só que às vezes as pessoas não queriam ir brincar comigo. Aí minha irmã dizia assim, “não, mas eu só vou se minha irmã for”. Aí então, sempre foi assim.

Mas era muito engraçado, porque às vezes eu brigava com minha irmã também, e minha mãe era muito protetora. Ela dizia assim, “mas não pode brigar com a Siana, porque senão vocês vão acabar se espancando, e a Siana, não pode bater na Siana por conta do problema dela”. Aí teve um dia que minha irmã pegou e me bateu, e pensou assim, “a Siana não morreu, a Siana pode apanhar”.

Então, assim, eu cresci, espoleta!

 

 

Flávia

 

E você já tinha consciência que você era diferente das outras crianças nessa época?

 

 

Siana

 

Eu vou ser sincera, eu fui ter consciência que eu era diferente com 13 anos.

 

 

Flávia

 

E o que que aconteceu?

 

 

Siana

 

Eu comecei a me limitar! Eu comecei a ter vergonha de andar, eu comecei a, com 13 anos. Que aí eu fui percebendo, tipo, não, eu ando diferente! Foi com 13, até então eu não, 13 não, minto, 15.

Até então estava tudo normal. Até então estava tudo de boa.

 

 

 

 

Flávia

 

A adolescência né? A adolescência é tão difícil, né?

 

 

Siana

 

Hum, hum!

 

 

Flávia

 

E aí você, foi na adolescência que você percebeu que o seu corpo era diferente, que o seu jeito de andar era diferente?

 

 

Siana

 

Era porque até então eu ali com dez, até os dez anos, a gente ia para a matinê e todo mundo pulava, todo mundo dançava e todo mundo tava tudo bem! Siana ia pro rio e pulava de ponte, e tava tudo bem! É quando Siana completa 14, 15, 15 anos, Siana atravessava açude na aldeia. E quando completa 14, 13 anos, ué, parece assim que a menina se apaga.

Primeiro começa, primeiro essa depressão ali de, de começar por esse luto de ué, eu sou deficiente. De não aceitar isso, porque a minha mãe ela tem um AVC e é quando tudo aquilo se perde, porque primeiro eu sou abandonada pelo meu pai que não é indígena, meu pai ele vai embora eu tenho seis anos de idade. Primeiro eu perco de uma certa forma meu pai ali, e depois a minha mãe, ela, ela tem esse AVC e eu perco tudo isso. E é quando eu vejo que essa saúde indígena realmente ela não ampara a gente, e nunca amparou, porque quem era meu forte ali era minha mãe, e eu não tenho mais isso.

E aí junta tudo, e a Siana começa a ter essa vergonha, começa a ter tudo. E as únicas pessoas que eu tenho ali do meu lado são só minhas irmãs, minhas duas irmãs. E, e tá tudo muito próximo, porque eu sou a mais nova, mas a do meio só é um ano mais velha do que eu, e a gente tá lutando ali com a mãe que tem AVC, que está acamada, mas SESAI não tá dando suporte e a outra irmã tá morando em Brasília, tentando ajudar as irmãs que era de menor. E quando, e é quando a gente se revolta.

A gente muda pra Brasília, e é quando eu perco minha mãe, e é quando eu me revolto com tudo. E aí a gente sai de movimento indígena e sai de tudo, porque minha mãe, na época que minha mãe tem AVC, ela tava, minha mãe era cacique de uma aldeia, ela tava construindo tudo, e minha irmã tava indo pra movimentos com minha mãe.

Então toda a base que a Siana tem pra se tornar essa, essa potência né, entre aspas dizendo, vem dessa caminhada que minha irmã tá batendo com a minha mãe lá atrás.

 

 

Flávia

 

Quando que aconteceu o AVC da sua mãe, que idade você tava?

 

 

Siana

 

Eu tava com 15, tinha acabado de fazer 15.

 

 

Flávia

 

Foi nessa época?

 

 

Siana

 

Ham, Ham.

Ela tem AVC, eu estava com 15, e ela falece, eu estava com 17.

Aí eu mudo pra Brasília com 18. Aí a gente passa ali esse tempo todo, tipo, remoendo tudo. E quando ali, no ano de 2017, a minha irmã mais velha me convida pra ir pro ATL, que é o Acampamento Terra Livre, que é todo ano que tem em Brasília.

E ela diz assim, “Siana, vamos para o acampamento pra ver os parentes, e pelo menos pra ver os parentes e tal”. E quando eu chego no acampamento, me dá uma, uma certa energia de estar vendo todos os parentes e me traz a memória de tudo que minha mãe lutou.

Porque minha mãe era de movimento. E toda vez que mãe ia para o movimento, ia para as mobilizações, e a gente cresceu escutando minha mãe dizendo assim, “fecha a porta, não abre pra ninguém, só abre quando eu chegar, porque a gente não sabe o que está acontecendo na BR”. Porque toda vez que a BR era fechada, é, acontecia alguma coisa, e minha mãe, ela morria de medo. E toda vez que acontecia alguma coisa no Maranhão, minha mãe também dizia assim, “se alguém perguntar que vocês são indígenas, não falem nada”. E até hoje é assim!

 

 

Flávia

 

E de onde vem esse medo?

 

 

Siana

 

É porque às vezes a gente passa por retaliação!

 

 

Siana

 

E a gente cresceu com isso também. Porque, é medo, medo de acontecer alguma coisa com a gente, medo de a gente ser agredida, medo de acontecer alguma coisa. Aí a gente cresceu com isso.

Às vezes minha mãe saía, e eu lembro que minha irmã, ela pegava a faca, botava debaixo da cama.

Às vezes minha mãe saía e a gente pegava a cama, pegava as coisas mais pesadas e botava de trás da porta. Quando as BR eram fechadas, e minha mãe ia para a aldeia, porque podia acontecer alguma coisa e minha mãe estava na aldeia.

Então era isso que acontecia. E às vezes minha mãe falava assim, “eu vou para a aldeia, não sei que hora que eu volto”. E às vezes ela ia e a gente não sabia se ela voltava. Se ela ia…

 

 

Arthur 

 

Siana?

 

 

Siana

 

Oi?

 

 

Arthur

 

É, isso tá ligado a uma, a uma luta, a uma disputa histórica, né? Por território, por terra, por identidade, né, dos povos originários.

Como que essa luta dialoga com a luta pela inclusão das pessoas com deficiência? É no ATL? É no acampamento que você começa a, a entender que essas duas lutas tão juntas. Conta pra gente!

 

 

Siana

 

Na realidade, essa luta minha por essa questão da inclusão, ela começa na pele, porque, eu começo a ver tudo aquilo e começo a lembrar dessa luta da minha mãe.

Mas eu começo a observar isso no ATL, trazer de volta, tipo assim, eu sei que minha mãe não teve apoio de saúde, não teve amparo de nada. Mas não foi só minha mãe que morreu por falta de amparo. Outros indígenas também morreram por conta de falta de muita coisa. Mas se eu me silenciar, não vai adiantar. Só vai ser mais uma voz silenciada. Se eu não falar pelos nossos.

Só que quando eu comecei por aquele de 2017, 2018, eu comecei a observar que não falavam sobre pessoas com deficiência.

 

Siana

 

Aí eu comecei a pensar em algumas coisas. E só que toda vez eu ia pro ATL, eu ficava só sentada numa cadeira, eu passava o dia todinho sentada numa cadeira, eu não ia para marcha, não ia pra lugar nenhum.

Quando foi na pandemia, que deu aquela abertura para a gente começar a fazer evento, ainda meio ali receosos e tal, aí teve o ATL, em 2022, mais ou menos.  Eu já fui com tudo esquematizado na minha cabeça. Aí veio uma amiga minha do Rio de Janeiro, e foi a primeira vez que eu pensei, eu falei, “amiga, você vai para a marcha?” E ela falou, “vou. Pois eu vou contigo”. Aí ela falou, “então bora!”. Só que eu falei assim, “mas se eu cansar, aí a gente, a gente pede um Uber, tá bem?”. Ela falou, “tá bom”.

Eu comecei indo devagarzinho, devagarzinho, só que eu fui, eu fui pensando, gente, esse povo anda rápido, minha marcha é lenta. Então, cada vez que eles forem rápido eu tenho que estar à frente deles. Então cada vez que eu via que eles estavam indo na frente, eu tentava ir mais a frente ainda. E quando minha tia me viu, ela, e tinha gente que me olhava e chorava, tinha gente que me olhava com olhar meio ríspido, meio assim. Aí essa minha tia pegou e gravou e começou a, que tipo, ter, que tinha pessoas que lembrava da minha mãe e vi a luta da minha mãe toda. Ai eu beleza. Aí eu consegui passar o que eu queria.

Porque eu ainda fiz até uma camiseta de um desenho que eu também lancei na internet, que foi meu primeiro desenho que, que Milene Correia fez meu, para o meu aniversário. Aí eu peguei, fiz tudo esquematizado, pá! Aí eu fui.

Quando eu fiz isso…

Oi?

 

 

Arthur

 

E descrevendo essa imagem, é você na frente da marcha, do, do…

 

 

Siana

 

Isso.

 

 

Arthur

 

Do Acampamento Terra Livre, com as bengalas canadenses, e estão todos os indígenas ao fundo, não é isso?

 

 

Siana

 

Isso. Exatamente.

 

 

Arthur

 

É uma imagem muito forte, né? E você está à frente deles com a bengala canadense, então é uma imagem que mostra de fato a luta que você representa hoje?

 

 

Siana

 

Exatamente!

E ali começa tudo. Aí eu peguei e falei pronto, já deu o recado que eu queria dar. Nem que eu não consiga andar manhã, mas eu consegui passar o recado que eu quero dar. Aí isso foi, é, isso foi em abril, foi, isso foi em abril daquele ano, mas só que antes disso, Davi Xavante foi o primeiro indígena a ser vacinado pela covid 19, uma criança.

Quando Davi faz isso, eu não sabia que ele era uma pessoa, uma criança com deficiência. E nesse dia eu tava fazendo um trabalho da faculdade e todo mundo começou a falar, falar na internet. E meu telefone tocando e eu não estava olhando nada, aí só que daí, um amigo meu, que é baiano, Ibrahim Nascimento, fez um desenho, mas só que fez ele em toda sua totalidade, usando a órtese dele, tudo! Quando ele fez o desenho, aí eu abri, eu falei assim, “ué, mas isso aqui é uma órtese, porque eu já usei, eu sei, porque eu já usei”. Aí quando eu fui ver a foto eu falei, “gente!”. Aí eu comecei a chorar.

Aí eu mandei mensagem para Ibrahim, eu falei Ibrahim, e chorando. Ele “Siana, sabe por que que eu coloquei a órtese? Porque eu sei da sua luta”. Isto lá em janeiro, aí quando foi em abril, eu somei uma coisa com a outra. Falei Davi, tu não sabe a porta que tu me abriu para fazer isso.

Eu peguei o desenho de Davi que eu falei Ibrahim, me manda o desenho de Davi, fiz uma camiseta e comecei a andar pelo ATL todinho com essa camiseta. Só eu tinha essa camiseta.

Aí depois todo mundo, “Siana! Eu quero uma camiseta dessa!”. Aí eu falei, “gente então, eu só tenho essa que eu mandei fazer pra mim”.

 

 

Flávia

 

Siana, Siana, conta como era a tirinha que explodiu na internet?

 

 

Siana

 

É porque eu peguei falei assim, “Milene, estou com uma ideia”. Aí ela falou “o que?”, eu falei, “faz um desenho para mim?”. Aí ela pegou e fez, uma foto minha que eu tava toda pintada de jenipapo, e eu só queria que no desenho dissesse assim, “a minha deficiência não me faz menos indígena”. Aí ela fez, eu botei na internet.

 

Siana

 

Ai nisso ela disse assim, “Siana, hoje é dia 19 de abril, que que tu acha de a gente fazer uma tirinha por Milene sobre Rodas?”. Eu falei é, tipo assim, eu sou muito fã do trabalho dela. Ela foi a primeira pessoa não indígena, a me abrir essa porta para falar sobre isso, por esse meio dos quadrinhos.

Aí eu falei mulher, vambora! Aí ela fez. Ela disse assim “Siana, tu passou por algum preconceito no dia que tu foi marchar até o Congresso”, eu falei inúmeras, me fala alguma aí, e aí eu peguei, falei para ela. Aí eu falei assim mulher, quando eu tava descendo, eu escutei um parente, porque a gente se trata assim entre indígenas, um parente dizendo assim, “parenta, volta, porque senão vai conseguir andar até o Congresso”. Aí eu só olhei pro parente e saí, e fui seguindo. Aí o parente só me olhou assim, com olhar de pena e saiu também.

Aí ela pegou e falou beleza Siana. Aí no quadrinho ela colocou assim, “hoje é dia 19 de abril. Então por conta disso, a gente vai fazer uma caminhada, vai ficar assim no quadrinho, pra, pra falar sobre a luta dos povos indígenas”. Aí aparece um gatinho, porque ela não usa pessoas, ela usa animais e tal.

Aí o gatinho diz assim, “é, mas será que tu vai conseguir? É porque é capaz de tu cair”. E aí ela coloca, eu dando uma, empurrando o gatinho com a minha bengala canadense. Aí o gatinho cai porque eu dou bem uma porrada no gatinho.

Aí o gatinho cai!  Nisso que o gatinho cai, eu falo assim, “porque se tu cair alguém vai ter que te carregar”. Aí nisso que eu derrubo o gatinho, eu pego e falo com gatinho, “tu quer que eu te carregue?”. Aí saio com uma cara meio que debochando do gatinho. E isso repercutiu pros pequenininhos, né, pras criancinhas.

Aí tem uma criancinha chamada Helena, é, Elisa, que ela também é uma criança com deficiência, que o pai dela falou que na época que isso repercutiu, ele também é jornalista, “Siana todo dia Elisa pede pra eu ler pra ela”.

Aí o pai dela lançou um livro. Eu tive que ir quando ele lançou o livro dela, e quando eu cheguei, Flávia, no lançamento do livro, eu tive que ir do jeito que eu tava no quadrinho. Quando eu cheguei, ela ficou assim, “olha a menininha que derrubou o gatinho, ela tá aqui”, e toda emocionada.

 

 

Flávia

 

Que legal!

 

 

Siana

 

E eu fiquei, meu deus, e ela, ela com as irmãs dela. Então, tipo, então, virou uma febre.

Aí toda semana, todo mês aliás, aí a gente lança uma tirinha ali e todo mundo ficava já esperando. Então isso ficou uma febre ali no ano de 2022 por conta disso, porque sempre existe necessidade de trazer isso.

 

Siana

 

Então, eu percebi que falar sobre a pessoa com deficiência gente, é complicado. E eu não queria trazer isso, ainda mais falando de indígenas, Val, não é falar apenas de pessoa com deficiência, é porque a gente está falando de mais de 300 povos. E eu não estou falando apenas do meu povo. E eu sempre tive um respeito muito grande por cada povo, porque a forma que eu falo do meu povo Guajajara Tentehar é de um jeito. O povo Kamaiurá, o povo Pataxó, o povo Kanela, o povo Xokleng vai ser de um jeito diferente, porque cada povo trata essa temática de um jeito diferente. Então quando eu trago isso, eu tento trazer isso de um jeito mais, sabe, mais leve, mais descontraído, porque eu sempre digo que é de dentro para fora.

Como eu falei lá no começo, o meu povo dentro da minha aldeia me tratou de um jeito, mas na outra aldeia foi de um jeito diferente, porque isso ainda para nós, tá sendo de uma forma de um letramento, por conta de, porque falta muito, falta muito letramento, não só para sociedade não indígena, até para os indígenas mesmo. Por conta de toda a história que a gente já sabe, historicamente falando.  Isso para dentro da nossa cultura ainda é uma questão muito delicada.

Então, por isso que quando eu trabalhei na SESAI, eu trabalhei na SESAI durante um ano, que a SESAI a Secretaria de Saúde indígena. Eu sempre bati na tecla, com o secretário de saúde indígena, Bebê Tapeba, que é de dentro para fora. Nunca vai ser de fora para dentro, porque a gente tem que tratar primeiro com o nosso povo.

 

 

Val

 

Siana, a gente tem hoje um número de pessoas indígenas com deficiência no Brasil?

 

 

Siana

 

Tem!

É, eu comentei até em uma mesa de doutorado que eu participei, que esse número ele está defasado, por quê? Porque somos mais de 1 milhão de indígenas, contando com o número de indígenas isolados. Se a gente for parar para pensar.

E o número que o IBGE deu ali no, alguns meses atrás, é só de 131.000, mais ou menos. Sendo que a gente não tinha esse número! Por quê o último censo foi lá em 2010, o último censo que o IBGE deu.

Mas eu cobrei esse censo lá em 2022, ou foi em 2023, mais ou menos? Para uma moça que trabalhava no IBGE, porque eu trabalhei, eu participei de um processo seletivo que foi feito pela, pela ONU, sobre jovens ativistas com deficiência, onde a moça não soube me responder, eu perguntei para ela assim, quantas pessoas com deficiência tinham na área indígena? E ela disse que não sabia da resposta, que era para eu perguntar na Secretaria de Saúde Indígena, na época eu ainda não estava na SESAI. Que eles não tinham esse número, porque tudo que se trata de saúde indígena, tudo que se trata de povos indígenas, eles falam que é diferente.

 

 

Siana

 

É assim que acontece nas comunidades. Então ela não soube me responder.

E quando isso vem pra gente, depois de quase dez anos, eu mesmo falei. Então tá! E quando isso saiu, logo depois saiu um dado da SESAI também, que a SESAI lançou uma plataforma aonde, depois de mais de dez anos, mais de isso, mais ou menos de mais de dez anos, a SESAI ia incluir uma plataforma, dados que iam ter sobre indígenas com deficiência, porque isso nunca foi pensado dentro da Secretaria de Saúde Indígena. De tanto a gente bater na, na Secretaria de Saúde Indígena, dizendo não, a gente quer que tenha alguma aba, alguma coisa que fale sobre isso, porque tem lá sobre falando, sobre saúde da mulher, saúde do idoso, saúde, mas é tudo engavetado! Mas não tem alguma coisa que falasse sobre pessoas com deficiência dentro da área indígena. Porque, o que acontece, as pessoas com deficiência dentro da área indígena, elas não são cuidadas.

Meu primo também tem paralisia cerebral, meu tio falou ontem, meu tio mandou foto para mim. Ele só está lá, deitado numa rede, já está com anos que não tem o acompanhamento, o acompanhamento dele parou. Cada vez mais que é trocado a equipe, que a SESAI é por contrato, porque ela tem os contratos de saúde, cada vez está pior! E fica passando e a pessoa só fica lá definhando. Então, assim que saúde diferenciada?

 

 

Flávia

 

É, você está falando da precariedade na saúde, isso impacta na trajetória de vida né?

Na vida escolar também! Porque a criança precisa de uma estrutura de saúde, de um apoio e até mesmo de, mediações necessárias para que ela tenha mais autonomia para chegar na escola. Siana, como que foi a sua trajetória escolar? Você frequentou a escola comum?

 

 

Siana

 

Sim!

É, voltando só um pouquinho lá no começo, como foi que eu comecei tudo isso também, foi justamente porque eu comecei, é, um projeto meu na faculdade falando sobre a questão da educação inclusiva, que eu comecei a pensar sobre essas questões todas. E eu pensei assim, ué? Eu nunca vi isso aqui sobre educação inclusiva dentro da área indígena! Nunca nem tive contato sobre isso aqui.

Eu, pra ser bem franca com vocês, eu sempre falo isso nas minhas palestras, assim, quando é direcionada sobre essa questão de educação, eu fui saber que eu tinha, que eu tinha direito e uma educação inclusiva, ou a um monitor, ou alguma coisa do tipo. Quando eu estava no curso técnico!

 

Siana

 

Porque quando eu tava na escola regular lá no Maranhão, nunca nem sabia disso. Eu frequentei a escola regular no Maranhão sim, mas tudo muito bem precária.

Por isso que mãe também resolveu sair da aldeia, porque não tem nada assim, oferecido para criança dentro da comunidade. Se estiver chegando isso é agora, porque o MEC disse que isso está chegando, mas é agora.

Participei ano passado da cúpula da América Latina e Caribe no Rio de Janeiro, sobre deficiência, mas eles falaram, mas falar é uma coisa e o fazer é outra.

Aí eu perguntei para minha prima, que é diretora de uma escola. Ela falou realmente que, que era para chegar pelo menos um monitor e um intérprete para dentro da área indígena, mas até hoje não sei se isso chegou ou não.

A sala de recurso? A gente nunca nem ouviu falar em sala de recurso dentro da área indígena. Quando eu estudei no Maranhão, nunca nem tive nada disso, nunca! Sabe o que que aconteceu uma vez, para não dizer que eu nunca tive, única coisa que eu tive, eram as professoras que se tornavam amiga da minha mãe, me deixavam de canto, e dizia assim, “Siana, vou passar outro dever para você, tá bom?”. Me deixavam ali quietinha e me passavam outro tipo de dever. Era só isso, mais nada.

E teve uma vez que a professora não quis me dar aula, foi obrigado a uma professora da APAE, porque eu só terminei o ano porque eu conheci a APAE com uns dez anos de idade e eu terminei o ano porque a tia Neide, que era professora da APAE, disse assim, “Marlene vai na prefeitura e diz na prefeitura que eu vou dar aula para Siana”.

Aí ela me deu a aula, e aí eu consegui terminar o ano. Porque a professora na quarta série não quis me dar aula. Então é nesse sentido, eu não tive essa ajuda ali, entendeu? É por isso que minha irmã diz que se eu cheguei até a faculdade hoje, foi por conta dela, porque a única professora de recurso que eu tive foi minha irmã dentro de casa. Foi só isso.

Mas eu nunca tive nada assim. E dentro da área indígena a gente não tem isso. A gente nunca teve isso. E foi isso que me levou a ter essa iniciativa também, de buscar entender o porquê que isso nunca chegou na área indígena.

 

 

Flávia

 

E essa, essa sua percepção mais crítica e até mais ativista, foi se desenvolvendo, ao longo do seu amadurecimento, né? Que aí você ingressa na universidade e abre uma interlocução com outro nível, né?

 

 

Siana

 

É isso… Exatamente.

 

 

Flávia

 

Como que foi, como que foi sua entrada na faculdade?

 

 

Siana

 

Mulher, até hoje a minha professora diz que, que não foi eu que escolhi minha faculdade, foi minha faculdade que me escolheu, porque eu nunca quis fazer letras. Desde quando uma professora minha de português disse assim, “você nunca vai ser ninguém na vida. Olha sua letra? Eu não entendo o que você escreve”. Aí eu, tá bom! Aí, eu fazia as coisas, mas, que tipo assim, eu hoje que eu estou entendendo que eu tenho a minha forma de aprender as coisas!

Hoje em dia, que eu entendo que eu, tenho meu jeito, que eu entendo, que eu aprendo. Mas antigamente não, antigamente eu pensava realmente, cara, eu sou burra! Porque eu leio, leio, leio, leio, eu não entendo. Não, não compreendo nada. Então foi nesse sentido.

Eu tentei várias vezes o Enem e nunca dava nota, nunca dava nada. Aí dessa vez deu. Aí eu fiz e passei pela cota, eu ocupei a segunda, segunda vaga, pra pessoas com deficiência. E também porque eu era indígena, né?

Mas quando eu entrei na faculdade eu fiquei assim, “que que eu estou lendo aqui? Que que é esse aqui? Eu não estou entendendo nada, Jesus!”.

Aí hoje não, hoje eu já ajudo as minhas irmãs, já estão todas na faculdade. Só que hoje eu entendo que tudo foi um processo.

Entende? Foi, foi preciso a Siana ter bombado em todas aquelas outras provas que ela fez para hoje ela, ela ter passado, ela ter a cabeça que ela tem, porque tudo, tudo tem um propósito, nada é nada por acaso. Então foi nesse processo assim. Porque se eu tivesse passado lá atrás, eu acho que não teria o gosto que tem hoje, entende? Então foi, foi nesse processo assim de entender o porquê que foi agora. E também hoje eu entendo que minha área é mais área da pesquisa, e realmente eu pesquiso sobre educação inclusiva. Hoje eu entendo que eu quero ser professora da educação inclusiva.

Eu quero ir por essa área, mas também quero levar isso pra, pra a área indígena, porque isso não tem, dentro da área indígena. Isso não existe!

Então, quando eu entrei dentro da faculdade, uma professora minha que é, que é a professora Cândida, que hoje está na UNB, foi a primeira pessoa a pegar na minha mão e disse assim, “Siana, eu vou te ensinar então o que que é pesquisar, o que é”. Eu uso o termo pesquisadora, mas a minha irmã diz que a gente desde criança é pesquisador. Porque desde criança a gente sentava com o nosso avô, e nosso avô começava a contar algumas histórias assim de muito tempo atrás e, e até hoje a gente passa para os nossos sobrinhos. Então é dessa forma né, que a gente vai aprendendo.

E quando eu cheguei na faculdade, eu me dei conta do quanto nosso povo perece! Perece mesmo, ainda mais o povo com deficiência, porque eu não quero mais, Flávia, e demais companheiros, que outras pessoas tenham que sair das suas comunidades para poder ter conhecimento. Eu não quero mais, porque eu tive que sair da minha comunidade.

 

Siana

 

Eu não quero mais que uma criança tenha que sair para poder estudar, entendeu? Porque assim, eu tive que sair da minha base. E hoje eu sofro com isso, porque assim eu entendo que o que o meu parente fala, que os meus tios falam. Eu falo muito pouco a minha língua, eu entendo mais do que falo.

Então assim, quando meus parentes estão falando eu entendo tudo, mas eu não consigo pronunciar com muita, com muita perfeição.

Então isso me falta! Me falta a fluência da fala. Então é…

 

 

Flávia

 

Você está dizendo que pra avançar na sua conquista por autonomia, você precisou se afastar e até abrir mão, de uma parte importante da sua identidade Siana!

 

 

Siana

 

Sim!

 

 

Flávia

 

Isso é muito sério! Isso é muito sério!

 

 

Siana

 

Até mesmo da questão cultural, de uma certa forma.

Que nem agora, no mês de setembro, o mês de setembro é o mês que tem mais festas culturais na minha, na minha região, entendeu? E aí a gente não pode participar porque mora aqui, mora na cidade, entendeu? Mora muito longe, e é tudo muito caro pra ir pra lá.

E a gente fica assim, de mãos atadas porque a nossa fonte tá lá. O bom que ainda tem essa questão da tecnologia, mas nem sempre é a mesma coisa, sabe? De você, que nem uma vez eu estava conversando com meu primo e ele disse assim, “Siana, é totalmente diferente de você estar aqui na base! De você estar aqui, de você pesquisar aqui, de você tocar, porque é muito diferente de você estar numa festa cultural”.

Então é tudo isso, sabe? Então é o que eu já falei para minhas irmãs, eu só vou realmente terminar minha faculdade, fazer minha especialização, fazer o que eu tenho que fazer aqui na cidade, eu vou trabalhar com o meu povo dentro da minha comunidade. Porque é isso que eu quero. Eu sinto essa fome, essa sede, entende? Quando eu era criança, eu não entendia isso.

 

 

Siana

 

Eu tinha vontade de ir pra cidade realmente, porque nessa cidade eu tinha televisão, lá eu não tinha televisão, lá eu não tinha energia. Só que quando a gente vai tendo mais maturidade, a gente entende que, não é isso aqui que eu quero, sabe? Eu quero cultura.

 

 

Flávia

 

Essa sua busca por autonomia, por uma vida digna, ela necessariamente passa por trabalho e renda.

 

 

Siana

 

Hum, hum!

 

 

Flávia

 

Como que é isso para você?

 

Siana

 

Flávia, é um pouco desafiador, porque assim, desde muito pequena, desde quando eu me entendo por gente, eu recebo loas e hoje eu sou bolsista. É, quando eu terminar minha faculdade eu vou parar de ser bolsista.

Aí vem essa questão de que aqui querendo ou não, eu moro no entorno da cidade que gera a cidade dos concurseiros, entendeu? De ter uma vida estável.

E por mais que eu queira trabalhar com o meu povo e tudo, é, eu sou assim, eu sou, eu sou um tipo de pessoa que eu falei o seguinte, quando eu chegar aos 30 anos, eu vou estar com tudo encaminhado, eu vou estar na faculdade, eu vou estar morando sozinha, eu vou estar fazendo alguma coisa da minha vida.

Tô fazendo alguma coisa da minha vida, estou morando sozinha, estou na faculdade, entendeu? Então, é, tipo isso. Só que, no final do ano que vem eu já vou ter terminado minha faculdade. E uma coisa que eu tenho aprendido na, na terapia, que graças a Deus estou fazendo terapia, façam terapia que é muito bom!

 

 

Siana

 

É…, é parar de estar pensando nessa questão, sabe, no amanhã. Porque, senão a gente começa a se boicotar no hoje. Mas é importante sim, pensar nessa autonomia de no depois.

Mas eu tô mais pensando assim, como é que eu posso agir hoje?

Porque se eu estou pensando só no amanhã, eu não vou conseguir aproveitar nesse hoje. Entende? Então eu estou vivendo um dia de cada vez, porque senão a Siana do amanhã, talvez ela não possa nem existir, assim, nessa questão dessa produção, entende? Eu sei que muitas pessoas com deficiência, tem essa preocupação, mas se a gente for parar pra pensar, Flávia, muitas pessoas com deficiência não conseguem nem chegar à faculdade. Muitas pessoas com deficiência não conseguem nem morar sozinha, entendeu? Então, muitas pessoas com deficiência não conseguem nem o LOAS, não conseguem nem ser bolsista. Então, eu estou aprendendo pelo menos a curtir esses momentos agora.

Sabe, por que Flávia, até aproveito este momento, já que o podcast ele também é esse espaço. Eu passei dois anos da minha vida presa, a vícios mesmo, a vícios desses jogos, a vícios, a tudo isso.

Tentando também suprir muitas coisas, minhas, da minha família e tudo. E eu vi que tudo isso não Valia a pena. Por isso que eu ainda estou em tratamento, e eu não tenho vergonha de dizer isso, entendeu?

Mas é por isso que eu aprendi a curtir o hoje! Porque se eu curtir o hoje, o amanhã ele pode existir. Então é por isso que eu não estou tão assim, sabe? Porque talvez o amanhã, vai vir um doutorado que eu tô pensando em fazer, talvez vá vir um mestrado. Então, um passo de cada vez.

 

Flávia

 

Siana, nessa sua trajetória como mulher índigena, em que momento você se sentiu vista, pelo seu povo como uma mulher com deficiência? E o quanto isso foi, e é importante para você?

 

Siana

 

Sabe quando foi? Foi no meu ritual, no meu ritual de passagem. Porque, nós mulheres indígenas, temos o ritual chamado, “A festa da menina moça”. Que é quando a menina faz a sua passagem de menina para mulher.

Por mais que teve ali alguns percalços, só que a gente tem que olhar para o lado positivo. Eu percebi o cuidado, eu percebi a forma que as pessoas estavam querendo incluir, não só a mim, mas tinha uma outra pessoa também, uma outra menina com deficiência. Então tinha nós duas, porque essa passagem ela é muito importante. É como se fosse o nosso baile de 15 anos. Vou, vou transformar assim, para vocês entenderem ele.

 

Siana

 

Então é nesse sentido, sabe? Então foi ali!

Porque quando a gente pergunta pra outra menina, “e aí, você fez o seu moqueado?”, que a gente chama. Aí ela fala, e ela fala sorrindo, “nossa, eu fiz! E foi assim…”. E ela começa a contar como foi.

Então foi, foi nesse sentido, e eu via assim, o brilho da minha mãe falando, sabe? “Não, ela fez e foi, foi assim”. E eu lembro que nesse dia foi passado no jornal, no TV Mirante lá do Maranhão ainda, sabe? Foi uma festa toda que foi feita. Então foi nesse momento, sabe?

 

Flávia

 

Obrigada Siana! Foi muito bom nosso papo, viu? Obrigada mesmo!

Adorei te conhecer melhor e acho que essa reflexão que você propõe ela é importante para todos nós! Porque ou a gente avança juntos, ou a gente não tem um futuro possível para toda a humanidade, né?

Parabéns pela sua trajetória, conta com a gente. Obrigada!

 

Val

 

Siana, foi ótimo te ouvir, tenho certeza de que vai ser, assim, um marco, vai ser muito interessante e importante para que outras crianças, outras mulheres e outras pessoas conheçam também um pouco da cultura indígena, e também das dores, e também dos momentos felizes que vocês têm em comunidade. Muito obrigado por compartilhar este conhecimento conosco, viu?

 

Siana

 

Obrigada gente!

 

Instituto Paradigma

Podcast “Pessoas Incluindo Pessoas” – Episódio 9  

Convidada – Siana Guajajara

Apresentação – Flávia Cintra, Val Paviatti e Arthur Calasans

Edição – Uirá Vital

Transcrição – Celso Vital