Pessoas Incluindo Pessoas

EP 05 – Feminismo Anticapacitista

No quinto episódio da segunda temporada do podcast "Pessoas Incluindo Pessoas", do Instituto Paradigma, mergulhamos em um tema fundamental e urgente: o Feminismo Anticapacitista. Nossos hosts, Flavia Cintra, Val Paviatti e Arthur Calasans, receberam Vitória Bernardes, psicóloga, militante de direitos humanos, conselheira de saúde e uma das fundadoras do coletivo feminista Helen Keller, para uma conversa essencial sobre como o capacitismo se manifesta na vida das mulheres com deficiência e como o feminismo pode e deve ser anticapacitista.

EP 05 – Feminismo Anticapacitista

Vitória compartilhou suas experiências e reflexões, abordando a complexidade da identidade como mulher com deficiência, os desafios da maternidade, a luta por direitos na saúde e a importância de construir um feminismo verdadeiramente inclusivo.

Principais Temas Abordados no Episódio

Identidade Política e Social da Mulher com Deficiência: A conversa iniciou com a reflexão sobre como a deficiência é uma identidade política e social que permeia todos os aspectos da vida, demandando reconhecimento constante e luta por direitos em todos os espaços.

 

Maternidade e Capacitismo: Vitória e Flavia compartilharam vivências sobre os desafios da maternidade para mulheres com deficiência, desconstruindo estereótipos e a pressão capacitista de provar a capacidade materna. Abordaram a importância de redes de apoio e a necessidade de naturalizar o cuidado.

 

Barreiras no Acesso à Saúde: O episódio denunciou as dificuldades enfrentadas por mulheres com deficiência no acesso a serviços de saúde, desde a falta de informação sobre saúde sexual e reprodutiva até o despreparo de profissionais e a violência obstétrica.

 

Feminismo Anticapacitista como Necessidade: Vitória explicou a motivação para fundar o coletivo feminista Helen Keller, destacando a importância de criar espaços exclusivos para mulheres com deficiência dentro do feminismo, para que suas vozes e pautas sejam centrais e não marginalizadas.

 

Economia do Cuidado e a Responsabilidade Masculina: A conversa tocou na urgência de redistribuir o trabalho de cuidado, tradicionalmente feminino, e no papel fundamental dos homens em se engajarem ativamente nessa pauta, superando a posição de “aliados” para se tornarem agentes de mudança.

 

Corpos com Deficiência como Corpos Políticos: Vitória ressaltou como os corpos de pessoas com deficiência são, em si, instrumentos de luta e resistência, que ao ocuparem espaços inacessíveis, explicitam a violência das estruturas capacitistas e demandam transformações profundas na sociedade.

 

Legado e Futuro da Luta: Flavia e Vitória concordaram sobre a importância de conhecer a história do movimento de pessoas com deficiência e de reconhecer as conquistas das gerações anteriores, fortalecendo a identidade coletiva e impulsionando a luta por um futuro mais inclusivo e justo.

 

Este episódio é um convite à reflexão e à ação. É um chamado para que todas as pessoas, com e sem deficiência, compreendam a urgência de um feminismo que enfrente o capacitismo em todas as suas formas, construindo uma sociedade onde todos os corpos e todas as vozes sejam valorizados e respeitados.

 

Não perca esta conversa! Ouça agora mesmo o Episódio 5 – Feminismo Anticapacitista da segunda temporada do podcast Pessoas Incluindo Pessoas no Spotify.

Podcast Pessoas Incluindo Pessoas, temporada 2, Feminismo Anti Capacitista, com Vitória Bernardes.

Feminismo Anticapacitista - Hellen Keller

E para aprofundar ainda mais no tema, baixe gratuitamente o guia “Mulheres com Deficiência. Garantia de Direitos para o Exercício da Cidadania”, publicado pelo coletivo Hellen Keller, e citado neste episódio. O guia está disponível na Biblioteca Virtual do Instituto Paradigma.

Leia a transcrição da conversa

Podcast Pessoas Incluindo Pessoas  - Segunda temporada - Episódio #05

Feminismo Anticapacitista, com Vitória Bernardes

 

Entrevistadores

Flávia Cintra, Val Paviatti e Arthur Calasans

 

Captação de áudio, edição e masterização

Uirá Vital

 

Transcrição

Celso Vital

 

 

Flávia 

Olá, eu sou a Flávia Cintra e esse é o podcast Pessoas Incluindo Pessoas do Instituo Paradigma, entrando em sua segunda temporada. Eu sou uma mulher branca, cis, hétero, olhos e cabelos castanhos, uso óculos e estou vestindo um vestido preto, branco e cinza. Estou aqui com Arthur Calasans e a Val Paviatti para um papo, que a gente estava esperando muito! Oi Arthur!

 

Arthur

Tudo bem, Flávia?  Vou me descrever. Eu sou um homem de pele clara, um homem cis, barba e cabelo grisalho, to vestindo uma camiseta preta. E aí, Val?

 

Val

Olá, ouvintes do podcast Pessoas Incluindo Pessoas. Eu sou a Val Paviatti, uma mulher cis, de pele clara, olhos e cabelos castanhos. Estou assim, super ansiosa para o podcast de hoje.

A convidada de hoje é psicóloga, mãe da Lara, militante de direitos humanos e compõe a Comissão de Atenção à Saúde das Pessoas com Deficiência e Saúde da Mulher do CNS, Conselho Nacional de Saúde. Está conselheira estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio Grande do Sul, o COEPEDE.

Val

Ela é uma das fundadoras do coletivo feminista Helen Keller. Seja muito bem-vinda Vitória Bernardes!

 

Flávia

Muito legal ter você com a gente, Vitória! Tudo bem?

 

Vitória

Tudo jóia, que prazer estar aqui com vocês! Vou me descrever rapidamente, eu sou uma mulher com deficiência, cis, hétero, branca, cabelo preto curto, to com um fone de tiara azul, visto um óculos preto de armação redonda. Tô com uma regatinha que está fazendo calor, vinho. E é isso, é um prazer está aqui com vocês.

 

Flávia

Vitória, eu estava te ouvindo, e aí me deu aqui uma dúvida se eu mencionei que eu também tenho uma deficiência na minha descrição, eu acho que não, mas eu não vou refazer, e vou pegar esse gancho, pra dividir com você, essa nossa multiplicidade. A gente não é uma coisa só, né?

 

Vitória

Com certeza não é. E as vezes a gente até fica nessa dúvida. Nos definimos enquanto pessoas com deficiência, enquanto identidade política ou às vezes eu quero falar sobre outra coisa que não seja a deficiência, né? E aí, dentro dessa reflexão, fico muito pensativa que independente do local que eu esteja, inclusive dentro da minha própria casa, eu sempre sou uma mulher com deficiência, e eu sempre sou lembrada disso, eu sempre me lembro disso. Seja no exercício da minha maternidade, seja de reafirmar que eu sou uma mãe com deficiência e que isso também vai influenciar na minha forma de maternar, e não  no “apesar de”. Mas a partir disso, nesse lugar de potência, então, acabo sempre me definindo como mulher com deficiência em qualquer lugar, quase junto com a carteira de identidade, ali, apresentando, porque é realmente uma identidade política que está em todos os espaços e querendo ou não.

 

Flávia

É uma identidade política, social. E não dá pra fugir disso, por mais que às vezes, e eu confesso, que eu tenho vontade, às vezes eu só queria ser uma mãe com os meus filhos num domingo à tarde indo tomar um sorvete. Mas é impossível porque eu caminho até chegar na sorveteria me lembra o tempo todo. É assim com você?

 

Vitória

É, quando tava chovendo, Flávia, eu lembrei, em julho, nós fizemos uma viagem em família. Não só eu, meu marido e minha filha, mas também minhas primas e os filhos, que é todo mundo dindo de todo mundo. Aquela coisa. E aí eu lembro que tá, vou respirar porque eu só quero, eu tô fazendo viagem, eu quero. Então estávamos indo para Salvador a festa, querendo relaxar e desconectar, né? Estava bem naquele modo descanso militante. E aí eu lembro que eu sou do Rio Grande do Sul, a gente teve aquela enchente né, que nos marcou profundamente. Então a gente tava com a questão do aeroporto fechado, enfim. E aí a gente tinha que fazer o deslocamento até a base aérea com um ônibus. Um ônibus turismo que aquele ônibus grandão, né, confortável, do qual eu imagino que seja assim ainda porque eu não entro nele, pra mim era aquele ônibus circular. Enfim. E aí, convidam os meus familiares que estavam juntos para ir nesse ônibus. “Bonitão”, eles falam, “não, a gente vai com ela”. Eles nos olham assim meio,  olharam assim com eles, com um olhar de “vocês vão com ela mesmo?”, né.

E aí, esse lugar assim de essa repulsa, essa coisa de não entendo, o que vocês estão fazendo com ela, sabe? Até em coisas muito mínimas, e no olhar, e no questionamento, enfim. Obviamente que todos foram comigo, mas já, todo mundo se olhou assim, respirou fundo, tipo putz, né? Será que a gente pode se eximir de falar ou não falar? É que é cansativo falar! E acho que sobre tudo isso. Tem horas que tu não quer, tu só quer, aproveitar sem ter que pensar, problematizar.

 

Flávia

Pra viver, viver em paz!

 

Val

E aproveitando meninas, esse momento maternidade, eu queria saber de vocês duas, da Vitória e também da Flávia. Qual é o grande desafio? Eu acho que Vitória, você falou que estava de férias, queria separar esse esse lado militante, mas eu acho que não tem como separar também como sendo mãe. Como que é essa visão de vocês nos dias atuais?

 

Vitória

Bom. Pra mim né, algo que me marcou, era quando a minha filha, ainda com seis meses de idade, teve uma vez a gente andando no centro de Porto Alegre, param ela e, param a gente, ela estava no meu colo, e falam assim, “há, você está cuidando da mamãe”, né? Então, esse lugar de ser esvaziada do meu lugar, de maternar e ao mesmo tempo colocar pra Lara, que ela não tem que ter essa pressão e que, ao contrário, ela precisa, inclusive, porque ela está envolvida nesse processo, se posicionar, e dizer, “não sou uma criança, e estou nesse lugar de alguém que é cuidado”, porque se não coloca um peso, que não é um peso na minha relação com ela, é um peso social que invisibiliza a mim, enquanto mulher, enquanto mãe.

Vitória

Mas também visibiliza ela no lugar de ser uma criança, de ser a filha, que é quem precisa ser cuidada, enfim.

 

Flávia

Você sabe que esse é um viés que sempre me incomodou demais, e eu desviei dele o máximo que eu pude até hoje. Tanto que meus filhos agora tem 17 anos, já. E você sabe que eles não sabem, me ajudam a dar as ajudas que eu preciso. E o Matheus tem um metro e 93 de altura e tá enorme, forte, faz academia, mas eles são até desajeitados quando precisa me dar um suporte, de tanto que eu evitei a vida inteira, sabe?

E eu evitei  justamente porque eu também se nti isso logo cedo, aliás, antes deles nascerem, viu Vitória, teve gente que me falou “ai, que bom né, quando você envelhecer, você vai ter eles para cuidarem de você”. E eu sempre repudiei com muita força esse, esse olhar. Não, eu sou a mãe, é a mãe que cuida, e os meus filhos eu quero que eles cresçam livres.

Eles jamais, eu nunca vou permitir que eles cresçam com essa crença de que é deles a responsabilidade de cuidar da mãe tetraplégica. É claro que o envelhecimento é um processo natural e os filhos acabam, sim, assumindo um papel de dar suporte. Mas isso, isso na minha cabeça, sempre foi muito importante ser separado da deficiência,  justamente por causa desse estigma, né, que a gente carrega.

E é duro às vezes ter que estar falando o óbvio no nosso dia a dia e ficar desmanchando, né, esse tipo de comentário, eu te entendo!

 

Vitória

E ao mesmo tempo, eu vou compartilhar com vocês mais uma vivência, que é como eu deixei a minha, há, é o mandato enquanto Conselheira Nacional de Saúde terminou em dezembro, então se envolvia muitas viagens, enfim, e era um processo muito doloroso para mim ter que deixar a minha filha com a minha mãe, né?

Era doloroso, não por ela, pela minha mãe, não pela minha filha, mas sobretudo de nossa, eu estou delegando a minha, o meu maternar, a minha mãe, né? E isso era muito pesado. Minha mãe pegou assim, “mas calma aí, né? Deixa eu ter meu momento também com a minha neta, não me tira isso! E mais, olhe ao teu redor. Quantas mulheres necessitam do apoio de suas mães? Não te coloca nesse lugar”. E eu percebi que o fato de eu ser uma mulher com deficiência, que necessito de cuidado, que necessito de suporte, que tem uma dependência complexa de cuidado… Que é o nosso caso. Eu comecei a me privar de cuidados que são tão naturais. E aí a gente entra nas nossas próprias…nos nossos próprios conflitos.

Porque enquanto uma mulher feminista, enfim, que com deficiência, que defenda a questão das relações de interdependência, o quanto que eu queria negar isso, pra que não esvaziasse esse lugar, né? Então, o quanto que o cuidado precisa ser naturalizado, e ao mesmo tempo a gente se priva dele ou tenta colocar barreiras porque senão a gente vai ser diminuído.

Vitória

O que é uma segunda feira pra toda pessoa com deficiência, sobretudo mulheres, né?

 

Flávia

Exatamente porque aí já entra o capacitismo. E isso é uma grande armadilha. Porque quando você sobrepõe o capacitismo nesse cenário, é muito fácil, nós, por mais que a gente estude e tenha conhecimento e atue no ativismo, na hora que a gente está vivendo, a gente cai na armadilha de provar que eu sou boa, provar que eu sou capaz, provar!

Eu passei por isso quando meus filhos estavam pequenos também. Mas teve um dia que eu me dei conta, que todas as mulheres sem deficiência que eu conhecia, contava com uma rede de apoio para cuidar dos filhos pequenos, que é praticamente impossível uma mulher trabalhar, dar conta da casa, do cardápio, das contas, sozinha, e o fato de eu ter uma deficiência, não, não mudava tanto assim, é, o cuidado, o apoio que eu preciso tem uma especificidade, mas em relação aos meus filhos, é, a nossa vida era muito parecida com a das famílias de mães sem deficiência. E naquela época, é, isso pra mim foi uma certa Validação que eu precisava. E é muito louco isso, porque já que eu estou falando de 2007, eu tinha acabado de voltar daquela experiência incrível de participar lá da convenção, da elaboração da Convenção, da ONU. Eu estava sim, com todas as células do meu corpo encharcada de direitos humanos, de direitos de pessoas com deficiência. Mas a gente se fragiliza tanto, na hora de atuar na vida pessoal, bom, começando com a gravidez e a experiência de não ser vista como uma mulher, das dificuldades de encontrar um obstetra que cuidasse da minha gestação e não me olhasse como uma barriga sobre uma cadeira de rodas né. Você viveu isso?

 

Vitória

Muito. Eu lembro que, falando do obstetra, eu consegui encontrar meu obstetra no quinto mês de gestação! O que me colocou inclusive em risco, que não, né? E foi o primeiro, eu cheia de coisas, disso daquilo, e ele olhou para mim assim, “tá, tudo bem, mas como é que tu tá?”. E eu desabei! Sabe de olhar ali, que era uma mulher que estava gestando, mas que também existia ali, para além de todos os receios, assim, como é que tu tá, sabe? Então vamos por partes, vamos né. E isso foi realmente algo que me marcou e que ouvindo também, olha o quanto que é difícil. Mesmo a gente pensando, vivendo a deficiência num sentido político, enfim, de militância, o quanto que a gente se cobra. E eu lembrei muito da frase da Anahi Guedes de Melo, e ela falando assim, “gente, o que a gente quer? Existe até a possibilidade de uma vida ordinária”. As vezes a gente queria sabe, porque a gente sempre tem que ser extraordinário, tem que ser maravilhoso, tem que sabe que não pode fazer o arroz com feijão, que tem seu Valor, sabe? Não, no mínimo, você tem que estar sempre além. E a gente tem que passar dos limites do nosso corpo, porque todos os corpos têm seus limites, né?

Só que a gente não consegue performar toda essa normalidade aí, da qual nem reivindico, né? Mas o quanto que a gente adoece para ter que superar, ainda além, para ter a nossa voz minimamente escutada, né.

Flávia

E começando pelo acesso ao básico, ao serviço básico de saúde, a saúde da mulher! O quanto que é difícil a gente ter um… encontrar um atendimento que nos receba como uma mulher. Com especificidades da deficiência, claro, mas com o cuidado que toda mulher precisa. Como é difícil aqui no Brasil, e não só aqui, no mundo. A gente ter essa experiência naturalizada.

Você no seu, no seu dia a dia de trabalho deve conhecer e se assustar com as histórias que ouve, não?

 

Vitória

Sim, eu acho que em primeiro lugar, nós temos um sistema de saúde, o sistema único de saúde, que é referência mundial, e que tem de se Valorizar, que é uma disputa de, de modelo de mundo que a gente quer, né? Mas que, segue sendo uma disputa.

Então a gente tem uma precarização muito grande ainda, há muitos interesses que se atravessam na organização do próprio SUS, e que a gente não consegue garantir, por exemplo o princípio de equidade, que é uma diretriz do sistema único de saúde, né? E aí a gente vê o quanto que isso aparece na ponta, por exemplo, né, eu nem sabia, eu não usava anticoncepcional, usava camisinha, enfim, caí naquela porcentagem mínima, e engravidei. E eu fui saber que eu podia usar, por exemplo, usar diu de cobre muito tempo depois! Sabe, com a minha filha grande e eu soube disso através do Conselho Nacional de Saúde, né, conversando com a área técnica de saúde da mulher.

Então, assim, o quanto que, a informação não chega ali no território, nas unidades básicas, porque não se reconhece que nós exercemos nossa sexualidade, que nós temos direito a exercer nossa sexualidade, né? E que nós temos direito ao acesso à informação. Nos vem sempre pela falta, pela ausência, por aquilo que a gente não pode e nunca pelo potencial. E mais que isso né, enquanto humanas.

Então isso, obviamente a saúde é feita por trabalhadores que estão dentro de uma estrutura capacitista, de uma organização capacitista e que isso vai se manifestar de diferentes formas, inclusive no apagamento, né. Porque muitas mulheres, inclusive se tornam mulheres com deficiência em decorrência da desigualdade, em decorrência da violência, em decorrência da falta de serviços de saúde adequados, violência obstétrica, enfim, tantas questões. E quando nos tornamos mulheres com deficiência o que acontece? O nosso gênero é apagado. Então a gente percebe isso diferentes formas né.

 

Flávia

E assim nasce a pauta do feminismo de anticapacitista?

 

Vitória

Então, acho que é um processo de construção.

 

 

Vitória

A questão da… até pensando na construção do coletivo feminista Hellen Keller, que eu não estou mais no coletivo, não consegui conciliar, me afastei, mas de qualquer forma, o processo…

 

Flávia

Mas você é uma fundadora, a fundadora?

 

Vitória

Sim! E o processo de construção era muito, também, a gente fazia parte, eu e uma outra companheira antes de fundarmos com outras companheiras de outros coletivos desse país, o coletivo, nós estávamos num coletivo de mulheres com deficiência também.

Que tinha a perspectiva feminista, mas era um coletivo misto de mulheres com e sem deficiência. E aí a gente percebia também, o quanto que tem apagamento, o quanto que é difícil nos reconhecerem enquanto mulheres com deficiência, no nosso lugar. Ainda uma disputa que… que não tem sentido. Mas entre mães e mulheres com deficiência dentro do movimento feminista né. Porque muitas vezes, dentro do movimento feminista, nós somos vistas, não somos vistas também como mulheres né. E a pauta acaba ganhando das mulheres que cuidam, e que obviamente precisa ter uma pauta sobre as mulheres que cuidam, ainda mais com a desigualdade do cuidado. Mas a gente entendeu que a gente também precisava entender, qual é o feminismo que a gente acredita, que a gente quer construir. Porque senão a gente só fica, há mas as feministas não nos reconhecem.

Sim, mas as feministas somos nós, né? Então, como que a gente vai construir uma perspectiva que reconheça as nossas demandas, quando a gente precisa de tempo, precisa de diálogo pra entender também, quais são as nossas demandas, né? Então, o coletivo teve muito dessa perspectiva de ser um coletivo só de mulheres com deficiência, feministas, para, a partir dali, sabe, desse lugar, e entendendo quais eram as nossas pautas, quais eram as nossas reivindicações e inclusive também, estratégias de ocupar lugares, inclusive dentro do feminismo, né? Pra gente poder fazer a disputa política também, para que nos reconheçam.

E aí a gente tem o exemplo das mulheres, da organização das mulheres negras, né, mulheres indígenas, enfim, e o quanto que a gente também bebe dessa fonte para dizer que nós, mulheres com deficiência, também somos negras, indígenas, brancas, lésbicas, bissexuais, enfim, né, que somos tantas como começou né Flávia, e somos muitas.

E a gente precisa também entender que a deficiência não é um porém, a deficiência é um marcador importante que precisa ser considerado.

 

 

 

Flávia

É, em resumo, existimos e queremos e precisamos ser vistas.

Arthur você quer falar?

Arthur está quietinho.

 

Arthur

Há eu tô ounvindo porque eu estou aprendendo aqui, tô escutando esse diálogo rico e tô anotando aqui muita coisa.

Mas eu queria perguntar sim, da presença dos homens. Eu sei que você é casada e para você ter uma relação com seu companheiro que estabelece bem essa relação de igualdade, você tem as suas viagens, tem o seu trabalho, então tem uma uma lógica que estabelece em casa um diálogo. E eu li sobre você, você falando sobre economia do cuidado, o quanto o homem é desValorizado nessa posição em casa, quando ele assume essa… aqui acontece muito assim quando eu tô na família, vou lavar uma louça, falar coitado dele que tá lavando a louça, né?

Então, como é que, como é que o homem entra nessa lógica patriarcal pra fazer parte da luta também, né? Não tem protagonismo, mas tem o nosso apoio também, de estar nessa luta pela economia do cuidado e no apoio ao feminismo anticapacitista também?  

 

Vitória

Acho superinteressante isso, porque são várias coisas que já começaram a pipocar aqui para mim né, mas eu lembro muito, e a gente vai conversando e vou lembrando de episódios, né?

Eu lembro de um encontro que teve, era um encontro de mulheres também com a perspectiva feminista e uma das companheiras que estava lá, uma mulher sem deficiência, pegou e falou assim, porque meu marido exerce a função de cuidado também comigo, e cuidado com a casa. E foi por um cálculo matemático mesmo, de tipo quanto que ganha, quanto lá, como é que a gente se organiza? E foi assim. E aí ela chegou assim, “mas ele não pode só cuidar, né?”. E aquilo me espantou e foi violento de uma forma que eu não consegui nem verbalizar, e nem me colocar naquela situação, porque os homens não são vistos no lugar de cuidado. E hoje a gente já consegue reconhecer, por exemplo, que mulheres que trabalham em casa, que educam os filhos, que cuidam da casa, são trabalhadoras.

Mulheres que cuidam de pessoas, sejam pessoas com deficiência, pessoas idosas, enfim, asão trabalhadoras. E o quanto que é colocado aí esse lugar de apagamento né. E também um negócio de, tem cobrança, “olha, combinou de fazer isso em vez disso”. E ao mesmo tempo, das expectativas baixas de quando um homem cuida, né? Então também essas questões, ou olharem pra mim e falar, “olha, mas há, ele que cuida e faz tudo”. Não faço eu que faço lista de compras, eu que vejo o que tem e não tem. Sabe, eu que organizo cardápio.

Vitória

Enfim, quando a Flávia tá falando também veio várias lembranças. Então assim, o quanto que é uma relação complicada de Valorização, desproporcional em algumas questões, uma desValorização de não reconhecimento do trabalho, do cuidado. E, pra outra questão também, que eu acho importante que, primeiro, a gente vê as desigualdades entre homens e mulheres com deficiência, que são gritantes, né?

Quem tá ocupando o mercado de trabalho formal, não são as mulheres que são a maioria. São os homens com deficiência, e homens com deficiência brancos, né, sobretudo. Então, assim é superimportante a gente tensionar e questionar isso, por que, aquem está ocupando o mercado de trabalho hoje são os homens brancos com deficiência, né? Então, assim, inclusive sendo melhor remunerados do que homens negros sem deficiência. E aí, eu trago essa questão pra a gente tensionar, porque aqui não tem ninguém, coitadinho, nós estamos numa estrutura de poder que hierarquiza corpos e hierarquiza vidas.

Qual o papel de nós, pessoas brancas, no enfrentamento ao racismo? Por que racismo é problema de branco? Machismo é problema de homem. Então eu nem vejo essa questão só de aliado. Eu sempre falo isso e tensiono o meu companheiro que é, homens, passou da hora de vocês se envolverem! Vamos conversar com o coleguinha, vamos ali problematizar, porque eu acho muito confortável esse lugar de ser aliada, sabe, entendeu? E eu falo isso enquanto mulher branca.

É muito ai, somos todos contra o racismo, mas na hora do pega pra capar, né, ou vira para o lado, não tô vendo nada, não sei de nada, não é comigo. Então assim, é com a gente!

E aí eu acho que também é um exercício dos homens com deficiência também, cederem espaço e cederem um pouquinho o microfone para que as mulheres com deficiência falem, né? E aí, vendo a história do movimento de pessoas com deficiência, o protagonismo da organização, é muito das mulheres! Mas quem ocupava e tinha o holofote, eram os homens, né? E tá aqui Flávia, por exemplo, que não me deixa mentir. Então, assim, o quanto que é perverso esses lugares, e o quanto que todo mundo tem que fazer uma reflexão, porque a luta anticapacitista, acima de tudo, é uma luta por enfrentamento das desigualdades sociais e por justiça social, né.

 

Val

Vitória, eu li uma entrevista em que você diz o seguinte, abre aspas, “os nossos corpos pertencem ou deveriam pertencer a todos os lugares, O que faz com que todo lugar em que eu esteja eu acabe reivindicando algo? É bem violento”.  Você pode falar um pouquinho mais sobre esse sentimento?

 

Vitória

É violento porque os aspectos de falar de pessoa com deficiência, sempre parece que é algo específico, é pontual, é para as pessoas com deficiência, é uma benesse! Não, gente, são seres humanos

Vitória

E o que naturaliza a falta das estruturas serem modificadas, é justamente o fato de não serem enquanto humanos que somos. Então assim, é muito violento tu chegar, e tu vê, ainda hoje, por exemplo, “Minha Casa Minha Vida”, né? Se por acaso eu quiser visitar alguém que é beneficiário do programa e que ali eu provavelmente eu não consiga entrar porque a porta do banheiro não é acessível, porque as portas são pequenas, sabe.

E aí? Quem é que tá fazendo? Né, planejando, e arquitetura e tudo mais de espaço. São pessoas. E como que ainda hoje é tolerável isso? Falta de legislação, não é né? Então, assim, o quanto que a gente precisa romper com isso e jogar para as estruturas. Porque o problema da falta de acessibilidade não é meu! É de uma realidade que ainda é muito hostil para pessoas com deficiência, para pessoas em situação de rua, para pessoas negras e a violência vai se dar de formas diferentes. Mas é isso, a quem esse mundo pertence, né? Então, assim, eu acho que é muito violento e ao mesmo tempo é através de nossos corpos que a gente pode tensionar e dizer assim ó, “tá errado,essa estrutura tá perversa. Essa estrutura está adoecendo não apenas público específicos, populações específicas, mas a sociedade, o planeta Terra como um todo, né?

Então, eu acho que os nossos corpos são extremamente revolucionários, porque a gente traz na gente tantas, tantas, tantas lutas e que talvez por isso que tentem nos calar, né? Toda vez que a gente não pode ocupar esses lugares.

 

Flávia

Você já tem conversas a esse respeito com a Lara?

 

Vitória

Sim… e eu acho que foi de uma forma tão natural, né, que o que aconteceu sem eu ter que sentar com ela para conversar. Que ela foi percebendo, a Lara…

 

Flávia

Que idade que ela está agora?

 

Vitória

Com 12!

 

Flávia

Doze já!

 

 

Vitória

Doze! E eu lembro desde muito pequenininha, ela é muito atenta a qualquer, ela nem, sabe saber falar direito, mas ela fica com as anteninhas ligadas, sabe?

Eu lembro uma vez no Roda Viva, quando a Manuela D’Ávila estava concorrendo a presidência, e a gente estava acompanhando, e depois virou aquela coisa que ninguém deixava ela falar e tudo mais, só que durante, foram os primeiros minutos da entrevista, a Lara imagina, acho que ela tinha três aninhos, ela se levanta da cama e indignada, “deixa ela falar!”. E eu nem tinha ainda, entendido o que estava acontecendo, sabe?

E teve uma outra vez, eu sou muito louca de contar as histórias né, mas a gente teve uma outra vez que me chamou muito atenção, que a minha afilhada, a gente estava, foi visitar o museu da PUC, e aí eu estudei e me formei na PUC né, e o prédio da psicologia é o lado do museu. E aí eu falei “a dinda, a mamãe estudou aqui”, e a minha afilhada, como eu falei, dentro de uma estrutura capacitista, “mas dinda, tu estudou?”. E aí eu nem deu tempo de eu falar, a minha filha olhou para ela indignadíssima, e ela tinha o que? Uns cinco anos no máximo, olhou pra ela, falou assim, “sim, minha mãe pode tudo”. E aí, tadinha, né? A minha mãe pode tudo. E aí a minha afilhada começou a perguntar isso.

Perguntava uma coisa, e a minha filha respondia, perguntava outra, minha filha respondia. Até que a minha afilhada falou assim, “é dinda, mas tu sabe nadar?”, e a minha filha ficou apavorada! Porque a experiência dela comigo na piscina, era algo que a gente, não nasci para aquele espaço. E aí ela ficou apavorada e me olhou. E daí, tipo como quem pediu ajuda. E eu falei “Maricota, que é o apelido da minha afilhada. Todas as pessoas que tu conhece, sabem nadar?

E ela olhou assim, “não”, né? Então o quanto que… e acho que é nesses momentos, as conversas que a gente acaba tendo, até de forma indireta, com a Lara. E aí ela vai “opa tá, minha mãe não pode tudo, porque ninguém pode tudo”. E ao falar que ninguém pode tudo, ela também não pode tudo, e entende os limites de ser humano! E é exatamente, e traz a deficiência para o cotidiano, sabe, para a vida, como parte da vida e não algo excepcional, especial, anormal, atípico. Porque somos seres.

 

Val

Vitória ainda, olha, tô tomando conta aqui hein? Não interrompa por favor.

 

Flávia

É que o papo tá muito bom!

 

Val

Tá né?

Em 2020, Vitória foi publicado pelo coletivo Hellen Keller, o guia “Mulheres com Deficiência. Garantia de Direitos para o Exercício da Cidadania”.

Val

Qual é a importância desse guia? E este guia é para todas as pessoas ou somente para a mulher com deficiência?

 

Vitória

É para todas as pessoas, né, quando produzem conhecimento a partir sempre dos corpos sem deficiência, é onde a gente tem que se nutrir ainda de informação. Espero que essa realidade seja modificada. Mas com certeza, e é importante que as pessoas tenham interesse por aquilo que a gente tem a dizer. Mas, o coletivo, a gente decidiu fazer, então, tem vários artigos de mulheres com deficiência, tem uma parte final que são mulheres sem deficiência, pautando como que é as suas lutas. Tem mulher, mulher negra é a Michelle falando sobre a sua luta enquanto mulher negra, enquanto ela precisa dialogar com as mulheres com deficiência. Mulher vivendo com HIV, o quanto que precisa dialogar com a deficiência, porque está tudo interligado, enfim né. Mas eu acho que esse foi um marco para a gente também conseguir colocar o que a gente pensa, o que a gente quer construir, que a gente quer falar, de ter o registro das nossas vozes. Porque as nossas histórias também, enquanto pessoas com deficiência, são apagadas, né?

A gente não sabe muito da nossa história, né? Então, assim, eu mesma ouvindo os episódios anteriores, são gente, pessoas históricas que eu não conhecia. E a gente precisa dizer quem nós somos. Porque por mais que tenha esse sentimento de desolamento, de únicos, de primeiros, nós não fomos e não somos. E quanto que a gente precisa se conectar com vivência semelhante, com reflexões acima de tudo, para a gente se fortalecer e inclusive, sabe, quando tiver naquele espaço hostil, respirar fundo, olhar para dentro e lembrar de todas as pessoas que vieram e estão aqui construindo essa luta, né? Então, acho que isso também foi um dos objetivos desse guia.

 

Val

Inclusive, Vitória, Flávia, Arthur e todos os ouvintes. O guia está disponível lá na nossa biblioteca virtual, no www.institutoparadigma.org.br. Você pode fazer seu download, pode compartilhar. É só acessar o material que está disponível para todos e todas,

 

Flávia

Pois é. É uma publicação de 2020 e que continua atual, né Vitória?

Nesse momento que a gente vive, aliás a história é assim! A gente avança e retrocede. Os direitos humanos, as pautas sociais, enfrentaram e enfrentam momentos difíceis no Brasil e no mundo. Como que você vê a nossa condição de pessoas com deficiência, mulheres com deficiência nesse cenário que é tão hostil? Tá mais difícil viver?

 

 

 

Vitória

Tá mais difícil porque tá meio insalubre, né? A gente vê noticiário, vê manifestações, vê resultados de eleição aí mundo afora, mas ao mesmo tempo pensando, não é querer ser otimista, mas acho que é realmente concreto que não tem mais volta!

Não tem como a gente voltar, não tem como regredir, sabe? Eu acho que está muito bem alicerçado assim, sabe? Com muitos desafios, mas aquilo que a gente já conseguiu não tem mais.

 

Flávia

A ocupação dos espaços é uma realidade né? É, a gente, muito aos poucos, numa velocidade menor do que a gente gostaria, mas estamos sim, ocupando espaços, exercitando o protagonismo, e isso que você trouxe da gente, Saber quem veio antes… o que viveu, o que fez, o que conquistou. Eu acho que nos fortalece tanto quanto o grupo e é tão importante, porque a sensação, enfim, eu estou com 52 anos, então hoje eu vejo essa geração mais jovem, as vezes conversando como se eles fossem os desbravadores e nada aconteceu antes deles. Eu aos 20 anos, num primeiro momento também tive essa sensação quando comecei o meu ativismo.

E aí depois você vai estudando, e vai entendendo, que gerações anteriores nos trouxeram até aqui. E isso dá uma segurança. A gente se sente parte de um grupo, fortalece a identidade e o mais importante, a gente descobre que a gente não é tão sozinho quanto às vezes parece que a gente é, né? Acho que é isso fortalece mesmo o nosso grupo e a nossa identidade. E é um caminho de fato, como se diz, sem volta. Também concordo. Eu sinto isso.

 

Vitória

Exatamente! Eu acho que nesses momentos, assim que a gente vê, que eu acho que a gente também, enquanto militância, tem que entender, o uso da internet, uso das redes sociais, mas entender que não existe mudança estrutural sem organização coletiva. Essa coisa do eu me represento, não vai ter força, pra mudar, para tensionar, e que a gente possa, eu acho que sobretudo, vendo as experiências do passado e do presente, que a gente possa construir um coletivo cada vez mais próximo entre as pessoas com deficiência, para a gente construir essa força política que é capaz de realmente promover mudanças mais palpáveis no dia a dia, né?

 

Flávia

É isso. E aí, sabendo que pessoas como você estão diariamente dedicadas a elucidar, a abrir caminhos e provocar reflexões tão ricas quanto essa, nos, é um alento, é um alento.

Flávia

Muito bom ter você por perto Vitória. Eu quero dizer que eu sou sua fã, fã do seu trabalho, da sua trajetória. Queria deixar um beijo muito carinhoso pra Lara, que eu acompanho desde a barriga, de longe, mas feliz de acompanhar a sua trajetória tão bonita e tão vencedora. Obrigada por estar com a gente, por nos fazer, nos trazer reflexões tão ricas e profundas. E conta com gente sempre! A gente se vê. Obrigada, viu? Um beijo.

 

Vitória

Beijo! E eu que agradeço Flávia,  em teu nome em especial, que ao mencionar Lara né, foi através da tua experiência que eu vi que também a maternidade era um meio possível, era um caminho possível pra mim, né?

 

Flávia

E uma puxa a outra né?

 

Vitória

Exatamente!

 

Flávia

Uma puxa a outra e vamos juntas!

 

Vitória

Obrigada gente!

 

Val

Muito obrigada, obrigada Vitória. E foi assim, um papo, não digo nem entrevista, foi um papo delicioso!

 

Flávia

Delicioso!

 

Val

Beijos a todos e a todas e a até o próximo episódio, né Arthur?

 

Arthur

Exatamente. Muito obrigado Vitória! Obrigado mesmo. Foi maravilhoso!

 

Flávia

Manda notícias. Quando tiver material novo manda pra gente publicar na biblioteca, tá bom?

 

Vitória

Bah! Adorei isso gente! Muito obrigada E que prazer!

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