Pessoas Incluindo Pessoas

EP 7 – Você consegue perceber a pessoa além da deficiência?

No sétimo episódio do podcast “Pessoas Incluindo Pessoas”, mergulhamos em um diálogo essencial sobre a percepção da pessoa para além da deficiência. Com a participação dos jornalistas Flávia Cintra, Arthur Calazans e Val Paviatti, recebemos dois convidados que são referências em suas áreas: a psicóloga e consultora Camila Alves e o premiado diretor de cinema Daniel Gonçalves.

Tivemos a honra de receber Camila Alves, psicóloga, consultora e autora do livro “E se experimentássemos mais?”, reconhecida por sua atuação em letramento e sensibilização sobre acessibilidade, além de ter feito parte do elenco da novela “Todas as Flores”. Ao seu lado, Daniel Gonçalves, jornalista e aclamado diretor de cinema, cujos documentários como “Meu nome é Daniel” e o premiado “Assexybilidade” exploram a realidade da pessoa com deficiência e as nuances da sexualidade, desafiando percepções e promovendo a inclusão.

Neste Episódio:

Autodescrição e Terminologia: Uma discussão profunda sobre a evolução da linguagem, a importância da autodescrição contextualizada e o incômodo com termos como “PCD” ou “especial”. Os convidados reforçam a luta para que a “pessoa” venha sempre antes da “deficiência”, um direito conquistado em convenções internacionais, e como o uso de siglas pode objetificar a existência humana.

 

O Fetiche da Deficiência: Camila Alves e Daniel Gonçalves abordam a curiosidade invasiva sobre a condição de pessoas com deficiência, classificando-a como um “fetiche” que objetifica e reduz a individualidade. Daniel compartilha como seu filme “Assexybilidade (2023)” intencionalmente não revela as deficiências específicas dos personagens, desafiando essa norma e a obsessão em saber “o que a gente tem”.

 

Cinema e Acessibilidade: Daniel Gonçalves detalha a produção de seu premiado longa-metragem “Assexybilidade ”, que explora a sexualidade de pessoas com deficiência sob uma perspectiva plural. Ele relata os desafios de garantir a exibição do filme com legendas descritivas em cinemas brasileiros, destacando a falta de acesso para o público com deficiência auditiva e o impacto transformador de ter recursos como a legenda para a inclusão no cinema. A história de Clara, personagem surda, que viu o primeiro filme brasileiro no cinema por causa das legendas, ilustra a urgência dessa pauta.

 

Protagonismo e Lutas Contínuas: A conversa enfatiza a importância da ocupação de espaços de liderança por pessoas com deficiência – o “nada sobre nós sem nós”. Apesar dos avanços, os convidados alertam para os riscos constantes de retrocessos nos direitos, a persistência do capacitismo (muitas vezes visto como um preconceito “menor” e “autorizado”) e a distorção da luta por direitos em uma “mendicância contemporânea”.

Imagem promocional do episódio 007 do podcast “Pessoas Incluindo Pessoas”, temporada 2, com o tema “Você consegue perceber a Pessoa além da deficiência?”, com Camila Alves e Daniel Gonçalves.

Participantes:

Camila Alves: Mulher cega, doutora em psicologia social, consultora, palestrante, psicóloga clínica especializada em terapia corporal reichiana e cofundadora da Nexo Psicoterapia. É autora do livro “E se experimentássemos mais?” e atuou na novela “Todas as Flores” da Globoplay. Possui um cão-guia labrador preto chamado Pix.

 

Daniel Gonçalves: Homem branco, de estatura mediana, magro, cabelos, olhos e bigode castanhos. Jornalista e pós-graduado em cinema. É diretor dos curtas “Tem bala aí?” (2008), “Luz Guia” (2012), “Como seria?” (2014), e “Pela estrada afora” (2015), e dos longas “Meu nome é Daniel” e “Assexybilidade” (premiado como Melhor Direção de Documentário no Festival do Rio 2023).

Prepare-se para uma conversa que desafia preconceitos e celebra o protagonismo. Ouça agora, compartilhe e junte-se a nós nessa luta por uma sociedade mais inclusiva e consciente!

 

Acesse todos os episódios completos em Podcast Pessoas Incluindo Pessoas. Ouça também no Spotify.

Leia a transcrição da conversa

Podcast Pessoas Incluindo Pessoas: Temporada 2 - Episódio 7

Flávia

Olá, eu sou a Flávia Cintra, uma mulher branca de olhos e cabelos castanhos, cabelos mais curtos gente, cortei, agora está repicado no finalzinho do pescoço aqui. Uso óculos no modelo aviador com a haste preta bem fininha. O meu nariz é grande. Eu sou magra e estou usando uma blusa de decote V azul marinho. Estou aqui com Arthur Calasans, a Val Paviatti, no nosso podcast “Pessoas Incluindo Pessoas” do Instituto Paradigma.

Hoje, num papo com Daniel Gonçalves, Camila Alves, e estou ansiosa pra gente começar, porque vai ter carnaval, vai ter festa, vai ter sexualidade, acessibilidade, cinema, tudo junto e misturado, né Val?

 

Val

Tudo de bom, Flávia! E olha pessoal, a Flávia, a Flávia, tudo continua linda de viver com esses cabelos curtos, viu? Olá, eu sou Val Paviatti e é uma alegria estar aqui junto com vocês aqui. Sou uma mulher de pele branca, olhos e cabelos castanhos, hoje eu estou usando uma blusa preta com um colar superdelicado. Tudo bem com você Arthur?

 

Arthur

Tudo ótimo Val, ansioso também por esse programa, pra gente falar de cinema, pra gente falar de festa, de carnaval, de acessibilidade. Eu sou Arthur Calazans, sou um homem branco, tenho barba e cabelo grisalho. Estou vestindo uma camisa polo preta.

 

Val

E para começar o episódio de hoje, vamos conhecer um pouquinho dos nossos convidados.

Ela é uma mulher cega, doutora em psicologia social, consultora, palestrante e psicóloga clínica, especializada em terapia corporal reichiana, cofundadora da Nexo Psicoterapia, pesquisa estudos da deficiência e interseção com estudos de gênero e espécies, focando em política, subjetividade e exclusão social. Autora do livro “E se experimentássemos mais?”.  Atua há mais de dez anos com letramento e sensibilização sobre acessibilidade, inclusão.

 

Val

Já colaborou com empresas, espaços culturais e recentemente realizou consultoria para a Globoplay, do Grupo Globo. Na novela “Todas as Flores”, onde também interpretou Gabriela. Com vocês, Camila Alves. Olá Camila!

 

Camila

Oi, gente! Muito bom tá aqui. Agradeço já pelo convite para a gente ter esse papo gostoso…

 

Flávia

A gente que agradece!

 

Camila

(Risos)…

 

Arthur

É um prazer ter você aqui!

 

Camila

Muito obrigada! Bom, eu sou uma mulher branca, de cabelos compridos, ondulados, com umas iluminações douradas. É, assim como Flávia, também sou uma mulher com o nariz grande, boca grande. Minha boca chama atenção, acho que essa é uma importante… é importante dizer, o sorriso é largo!

E aqui no meu pé, tá o Pix, que é um labrador preto, o meu atual cão de trabalho, o meu cão guia que está trabalhando comigo nessa, nessa fase da minha vida, tá roncando, gente, porque não dá para ouvir. Tá roncando!

 

Val

Daniel Gonçalves é o nosso segundo convidado do podcast de hoje. Ele é formado em Jornalismo pela PUC Rio, é pós-graduado em cinema, documentário pela Fundação Getúlio Vargas. O nosso convidado tem uma deficiência de ordem desconhecida que afeta sua coordenação motora.

Trabalhou na TV Globo e hoje é sócio da produtora “Seu Filme”. Dirigiu os curtas metragens “Tem bala aí?”, de 2008, “Luz Guia”, de 2012, “Como seria?”, de 2014, e “Pela estrada afora”, de 2015.

 

Val

“Meu nome é Daniel”, seu primeiro longa-metragem, foi exibido em mais de 20 festivais. Como IDFA, Festival de Amsterdam, Festival do Rio, Mostra de São Paulo, Festival de Sidnei, Festival de Cartagena e Mostra Tiradentes.

“Acessibilidade”, seu segundo longa, ganhou o prêmio de Melhor Direção de Documentário no Festival do Rio 2023.

Seja bem-vindo Daniel Gonçalves!

 

Daniel

Oi gente! Tudo bem? É um prazer estar aqui. É, só gente, só gente boa e gente importante aqui com a gente. Eu sou o Daniel Gonçalves, eu sou um homem branco, de estatura mediana, magro, cabelos, olhos e bigode castanhos. E estou usando uma camiseta cinza. E atrás de mim está um fundo desfocado da sala da minha casa.

 

Flávia

Muito legal te encontrar Daniel, Camila! Nós nos encontramos, recentemente, num trabalho na TV Globo, o “Falas de acesso”, para mim foi uma experiência muito rica, de grande aprendizado. Queria falar um pouquinho sobre a relação de vocês dois também, que é uma parceria já de algum tempo, mas antes, eu queria pedir licença para acrescentar na minha autodescrição que eu sou tetraplégica e estou sentada numa cadeira de rodas.

Então, tantas questões né, nós temos tantas características que são importantes e que nos marcam e às vezes, na hora de se descrever acaba escapando. Eu deixei escapar aqui a minha característica que marca tanto minha identidade de ser uma mulher com deficiência. Camila, é, é importante, mas ao mesmo tempo é desafiador a gente tentar ter mais conciso, é, e focar nas características que realmente importam.

Eu poderia acrescentar que eu sou uma mulher cis, que eu também não falei. É importante? E o que que é mais importante?

 

Camila

Eu acho que é importante! É, mas eu acho também que é cada contexto, determina a importância de uma forma peculiar né. É, eu acho que tem uma,uma discussão que eu tenho gostado de começar a fazer nesse momento sobre a audiodescrição, a autodescrição, que é uma espécie de saturamento dessa, dessa ferramenta né, todo mundo aprendeu a usar, todo mundo usa, o mote. É, isso é uma conquista sem precedentes que veio pra gente bem nesse período pandêmico, onde o on-line começou a dominar e a facilitar a nossa vida, a autodescrição, ela se, se disseminou bastante, né, então esse é um ponto positivo. Agora, por outro lado, o que importa, e quando importa, é, aí eu acho que é o trabalho mais fino da gente fazer no dia a dia, nos pequenos encontros, é, de acordo com os temas que a gente for discutir, né?

 

Camila

Eu acho que às vezes é muito importante saber o que uma pessoa está vestindo e o que compõe esteticamente essa pessoa. Mas eu acho que às vezes é, é mais importante saber qual é a função dessa pessoa dentro do lugar onde ela está e como ela contribui com aquilo né. E aí ela ser cis, branca, trans, def, isso marca o lugar de onde ela fala, né.

Eu acho importante localizar sempre o lugar de onde a gente fala, para além da roupa que que a gente veste. É, mas não acho que está errado fazer uma, uma, uma autodescrição focada única e exclusivamente nos elementos visuais. Eu não acho que está errado, só acho que ela foi tendo camadas adicionais, assim sabe.

 

Flávia

É porque, assim, pensando na acessibilidade tecnicamente, eu, eu… as pessoas que enxergam, estão vendo ali uma mulher.  Em grande parte das vezes não tem diferença nenhuma na imagem dessa mulher, quando ela é cis e quando ela é trans.

 

Camila

Sim!

Sim. Mas deixa eu te dar um outro exemplo. Teve uma vez que eu vivi uma experiência, na fila de um restaurante, é, eu estava esperando com a minha bandeja, estavam me ajudando a servir, a me servir. E aí eu dei um passo para trás e pisei no pé de uma pessoa, esbarrei na bandeja de outra pessoa. E aí, na hora de pedir desculpas, eu já tinha ouvido essa pessoa conversando atrás de mim. Eu não sei, eu não me lembro agora como eu pedi desculpas, mas eu fiz esse pedido de desculpas, me referindo a uma pessoa do gênero masculino, e essa pessoa era uma mulher trans.

E aí deu lhe uma confusão, com toda razão.

É, porque ela se sentiu profundamente desrespeitada. Ela era visualmente, sim, uma mulher. É tinha ali uma grande passabilidade e performava, muita feminilidade, dentro dos estereótipos todos, do que é a feminilidade. Mas a voz pra mim era uma voz masculina. E aí eu falei, putz, tá aí, viu, às vezes eu preciso que as pessoas me digam que elas são uma mulher trans!

 

Flávia

Hum, hum. Entendi.

 

Camila

Nesses momentos, isso, isso é importante, porque senão…

Flávia

Claro!

 

Camila

Eu vou me referir a essa pessoa baseada num elemento que eu tenho dentro dos meus parâmetros normativos, de que porque ela tem aquela voz, ela é um homem.

Eu falei, ei tá complexo. Levei um sabão dessa mulher, com toda razão, é…

 

Flávia

Complexo, complexo, mas olha…

 

Camila

Complexo…

 

Flávia

Mas é um aprendizado diário.

Então eu posso me descrever de uma maneira, num evento, voltado, por exemplo, a uma discussão anticapacitista, e dar ênfase em outras características em um evento, por exemplo, focado em feminismo. É isso?

 

Camila

Eu acho que pode! Eu acho que pode.

Não é uma receita de bolo né, propriamente dita, é, mas às vezes eu me descrevo como uma mulher lésbica e às vezes não! Por exemplo.

Hoje, por exemplo, isso não apareceu. Eventualmente, essa marca que eu carrego, é, na, na minha forma de me relacionar afetivamente, sexualmente, ela é muito determinante. Às vezes não é desse lugar que eu vou falar. Mesmo que isso esteja aqui comigo e seja indissociável, e que eu fale sempre a partir dele. Mas hoje ele não é o ponto de partida inicial. Se a gente estivesse falando, por exemplo, sei lá, se o tema de hoje fosse amor, talvez isso tivesse que ter aberto, a minha autodescrição, né?

 

Flávia

Entendi.

 

Camila

Então eu tenho gostado de brincar com isso um pouco, porque essas ferramentas muito facilmente ficam mecânicas, é, e desincorporado do que estão acontecendo, sabe?

 

Arthur

Sim!

Sabe, Camila, eu vou pegar o gancho aí, de você ter falado de um ponto de partida de onde a gente parte né, pra perguntar para você e para o Daniel, é, em que momento a gente está, sobre a gente estar sobre a deficiência no Brasil. E a gente tem um público grande de professores que procuram o Instituto, a biblioteca do Instituto e conteúdos, de formação.

E… eles sempre me perguntam, é, sobre um ponto de partida, sobre o modelo de pessoa com deficiência, sobre o conceito de pessoa com deficiência. Em que momento a gente está no Brasil?

 

Camila

Começa aí Dani.

 

Daniel

É, eu começaria com uma coisa que eu tenho visto muito, em especial a rede social, que é a maneira como se referem a nós, né? Durante muito tempo foi em deficiente. Aí, em algum momento virou portador de necessidades especiais, seja lá o que quer que isso signifique. É, e aí, mais recentemente, virou pessoa com deficiência. E aí, é, por uma questão pessoal, para não ficar escrevendo pessoa com deficiência sempre, criou-se uma sigla, que é PCD. E aí agora tem um bando de gente falando pessoa PCD. Isso me dá nos nervos!

 

Flávia

Nossa!

 

Daniel

Porque pessoa PCD é péssimo, sabe, a gente lutou tanto pra botar o deficiência, pra botar o pessoa na frente, da, da deficiência, porque a pessoa é mais importante do que a nossa condição, então. E aí, de repente, agora tem uma galera falando em pessoa PCD a torto e a direito, então o que eu diria é isso?

 

Daniel

Pessoa PCD de jeito nenhum, pelo amor de Deus!

PCD é só uma sigla, que a pessoa com deficiência quando for falar, fala pessoa com deficiência, fala def, fala tudo, menos pessoa PCD.

 

Flávia

Obrigada Daniel, porque isso me incomoda demais também.

 

Camila

Isso seria muito bom!

 

Arthur

A mim também! Até especial, de especial também, por favor, não usem!

 

Daniel

E aí o especial, eu não sei, pode falar palavrão ou não pode?

 

Arthur

Pode, pode falar.

 

Flávia

Pode falar.

 

Daniel

É, enfim, agora no carnaval eu e Camila fomos a alguns blocos juntos. E aí, e aí, teve um, em especial, um bloco que acontece em Paquetá, aqui Rio. O pessoal sai de barca, vai até Paquetá, porque é uma ilha, para quem não conhece, que faz parte do Rio. E aí o bloco começa dentro da barca e tal, e aí chegamos lá na Ilha, é, e tinha logicamente muito vendedor ambulante, e aí, em determinado momento, o mesmo vendedor ambulante, é, me atropelou três vezes, assim tipo, bateu com o carrinho em mim três vezes. Aí na terceira, é, eu reclamei, falei porra meu irmão, você não está me vendo não?  Aí, quando ele ia retrucar, ele percebeu minha deficiência, ele falou, há, tipo, há, é especial. E aí eu, que durante muito tempo usei uns… quando as pessoas me chamavam, ou me chamaram de coitadinho, sempre falava, “coitadinho é o caralho!”. É, quando eu escutei aquilo, especial, na hora eu falei, “irmão, especial é a cabeça do meu…” (Risos)

 

Daniel

É o que rima, sabe?

Isso também mostra o que a gente já avançou muito, né, já aparecemos, já temos voz, mas tem uma grande parcela da, da população que ainda nos enxerga como seres inferiores, de quem não vale nem a pena discutir, como se a gente fosse café com leite. Não tem nada pior do que ser café com leite. Eu acho que o especial vai muito nesse lugar do café com leite, sabe. E é péssimo ser café com leite. Eu, pelo menos, sempre detestei ser café com leite e nunca fui! Então, é isso, uma historinha divertida aí.

 

Flávia

É! E é a terminologia que diz muito sobre a evolução, né, da organização das pessoas com deficiência, porque isso é resultado de uma resolução na ONU. As pessoas com deficiência do mundo inteiro se reuniram para escrever uma convenção, nessa convenção foi decidido que nós queremos ser tratados dessa maneira. Pessoas com deficiência. Mas essa sigla aqui no Brasil pegou de um jeito que tá difícil mesmo desmanchar. Te incomoda também, Camila?

 

Camila

É, me, me incomoda profundamente porque eu acho que a gente não usa siglas para nomear condições humanas, né, a gente usa siglas para nomear existência, existências inanimadas. Então eu acho que se a gente puder dizer, pela análise que o Dani começou a fazer das nomenclaturas que nos designam, é, o reconhecimento da existência, eu acho que fica muito claro que mais uma vez a gente é nomeado como um ser inanimado, objetificado, na direção de seres animados, seres vivos, a gente até atribui apelidos, mas não siglas, né? E tem uma coisa que, que toda essa nossa luta trouxe para a discussão, que foi a inclusão da dimensão pessoa, que é uma pauta da nossa disputa política, né, sermos reconhecidos como pessoas e ter direitos de pessoas, que a sigla retira de novo. E aí é muito bom, porque o argumento é, é para facilitar, para ficar mais fácil de falar, é para meu Deus! Não é para facilitar, é para facilitar a vida de quem, e por que que essa fixação pelo, pelo fácil do nosso mundo vai, vai objetificando as existências mais complexas como as nossas, né. E tem uma coisa que o, aparece no trabalho do Dani, e que eu ouvi ele dizendo uma vez, numa discussão que a gente foi participar sobre, sobre a acessibilidade, que eu gostei muito, que é, isso serve para muitas outras existências minoritárias, mas no nosso caso, é, o Daniel fez um filme inteiro, grande, com muitas pessoas com deficiência, sem ter que falar qual era a deficiência que cada uma dessa pessoa tinha.

É, tava lá. A deficiência era, o fio condutor das narrativas, óbvio. Mas o Daniel me ensinou a ver essa, essa obsessão que as pessoas têm por saber o que a gente tem, é, como um fetiche, sabe? Eu acho que a gente ainda está num lugar fetichizado, então as pessoas mal sabem o nome da gente e querem saber o que a gente tem, o que a gente teve. É, se não tem jeito, se não tem cura, se a gente já… Você diz, que é isso, gente! É…

 

Flávia

Nasceu assim?

 

Camila

Você nasceu assim? É assim desde quando? E as perguntas vêm com esses termos, né. Mas você é assim desde quando? Assim como? É óbvio que a pessoa pressupõe que a gente sabe do que ela está falando, porque como a gente é visto só com isso, não poderia ser de nenhuma outra coisa. Mas assim, o que é isso que você tem? Isso é muito comum, né? E esse fetiche, essa objetificação, esse reducionismo, ele ainda atravessa muito a nossa existência, né. Então, às vezes a gente quer ir tomar uma cerveja, aí a pessoa vem perguntar o que é isso que a gente tem? Isso o que, meu Deus! Você está no carnaval, você nem quer conversar com ninguém. Tipo barulheira danada, bloco andando, empurra, empurra. Aí vem, a gente viveu também num outro bloco que a gente teve junto, um momento em que foi se formar uma grande corda humana dentro da corda. A gente estava com uma outra amiga, que tem uma outra deficiência física e aí, na hora de formar a corda, iam inclui-la nessa corda humana em torno de uma parte do bloco, e aí alguém olhou para ela e falou assim, i, não, você não consegue. Porque a pessoa movimenta as mãos e as pernas e tem o movimento corporal de uma forma diferente, você fica, meu Deus, é carnaval né?

 

Flávia

Nossa!

 

Camila

É, é, e é o melhor e o pior do carnaval, né, tá todo mundo solto. Isso é para o bem e para o mal.

 

Flávia

Camila estava se referindo a acessibilidade.

 

Camila

Isso!

 

Flávia

Fala pra gente desse trabalho Daniel. E foi tão importante, sensível e inédito né?

 

Daniel

É, é, foi, e está sendo né, porque acho que o filme não acaba, né. Ele continua, depois que ele vai pro mundo, digamos assim.

A ideia do “Acessibilidade” surgiu durante a montagem do meu primeiro longa né, o “Meu nome é Daniel”.

É, no “Meu nome é Daniel”, tem uma sequência em que eu falo um pouco sobre as minhas próprias experiências afetivas e sexuais, e aí de algumas conversas que eu tive com o Vinícius Nascimento que montou o filme comigo, a gente teve a ideia de fazer um filme só sobre sexualidade e pessoas com deficiência. É, e aí eu vou tentar ser mais sucinto possível. A gente fez duas baterias de duas fases de gravação, uma em 2018, outra 2022. O filme ficou pronto em, no fim teve a primeira exibição em julho de 2023, então ainda é um ano e, vai fazer dois anos que ele teve a primeira exibição, que foi em Los Angeles, no “Autitest”, que é um festival de cinema LGBT lá de Los Angeles. Aqui no Brasil, a primeira exibição foi no Festival do Rio de 2023. E, e, como a Val falou na apresentação, eu ganhei o prêmio de direção de documentário por ele no Festival do Rio. Desse filme nasceu uma exposição para museus, que a Camila fez parte também, como personagem da exposição, porque, eu acabei gravando muito mais gente do que cabia no filme.

Eu gravei 26 pessoas, e no filme tem 15. E aí tinha muita coisa, muita coisa boa ficou de fora, então a gente resolveu fazer essa exposição para poder, de alguma maneira, dar conta de algumas dessas premissas que não entraram no filme. E aí, a Camila, foi uma das pessoas que eu gravei a mais, depois do filme, eu gravei ela especialmente para a exposição.

É, e aí, acho que é importante dizer que acho que disso tudo, né, o filme ele é, eu procurei que ele fosse o mais diverso possível, entendendo a diversidade aí da maneira mais plural que eu consegui. Então a gente tem diversos tipos de deficiência, identidade de gênero e orientações sexuais. E aí eu queria que ele tivesse pelo menos uma pessoa surda, pelo menos uma pessoa cega, pelo menos uma pessoa no espectro autista e pelo menos uma pessoa com deficiência intelectual. E isso a gente conseguiu ter, porque eu achava que era importante, é, tentar dar conta de todas as, ou de quase todas essas variantes, né,  de tipo de deficiência e todas essas interseções, né, seja interseção em formas de estar no mundo de sexualidade, seja com uma questão de raça né, então o filme tem pessoas brancas, pessoas negras, e por aí vai.

 

Val

E Daniel, quando surgiu essa sua paixão pelo cinema?

 

Daniel

Olha, que pergunta, é… difícil também. Vou tentar ser simples e objetivo nisso. Isso não foi não foi uma coisa que veio desde sempre. Eu, uma coisa que sempre teve comigo, foi uma coisa de contar história, isso desde muito pequeno.

 

Daniel

Desde criança a gente tem. Durante a pesquisa do “Meu nome é Daniel”, foi ver várias coisas que minha mãe tinha guardado e, avaliações e tal. E tem uma dessas avaliações feitas na clínica onde eu fazia reabilitação aqui no Rio, é, eu devia ter de três para quatro anos. E nessa avaliação, a terapeuta escreveu que eu era uma criança que tinha muita imaginação e inventava muitas histórias, em que os personagens eram sempre atuantes, positivos, né, proativos e etc. Então, essa coisa de contar histórias sempre teve comigo.

Mas o cinema veio mesmo durante a faculdade. Eu, eu me formei em jornalismo e aí, no meio da faculdade, eu entrei num estágio na TV PUC, eu fiz PUC aqui no Rio. E aí eu entrei para esse estágio na TV PUC como editor. E aí eu acho que começou a mudar, eu comecei a migrar do jornalismo, né, que eu tinha entrado no curso de comunicação, é, para trabalhar com esporte. E acho que depois desse estágio eu comecei a me encaminhar pro cinema, né. Ainda cheguei a trabalhar na Globo com, com jornalismo, fui editor do RJ1 durante três anos e meio, e aí logo depois de me formar. Mas aí já fui fazendo cursos ligados a cinema, estudei montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Depois fiz dois cursos, um de produção executiva e a outra, a pós-graduação em documentário, né, na FGV. E aí, em algum momento, nesse meio tempo eu pedi demissão da Globo e montei a produtora e estou lá desde então.

Acho que a minha trajetória no cinema é mais ou menos essa.

 

Flávia

E eu acho que a, a trajetória do Daniel, ocupando esse lugar como diretor e realizando trabalhos reconhecidos ao lado de todo o trabalho que a Camila também faz, esse protagonismo nas consultorias, de estar o tempo todo qualificando uma discussão a respeito do lugar da deficiência na vida das pessoas e fazendo essas reflexões mais aprofundadas, tem muito a ver com o que a gente estava falando no começo, da evolução da sociedade, da organização e do amadurecimento das pessoas com deficiência, ocupando o seu lugar como pessoas na sociedade e assumindo também esse lugar de protagonismo que historicamente nunca foi permitido pra gente. Então, hoje a gente vê muito menos do que a gente sabe que é, e é necessário, mas a gente já vê pessoas assumindo esse espaço, né. Eu sou uma jornalista que trabalha na televisão, a gente tem pessoas na política, na arte, ocupando esse lugar de visibilidade, de tomada de decisão. E isso constrói uma referência que as gerações anteriores não tiveram. Então, eu vejo que sim, temos muitas dificuldades, temos um cara lá que te chama de especial no meio do carnaval, essa interrupção, essa abordagem de curiosidade exagerada e até invasiva.

Mas ao mesmo tempo a gente já caminhou, e a gente tem conquistas que a gente tem que defender e não permitir que, que se volte atrás. De alguma maneira, vocês acham que a gente está escorado nisso, assim, esse olhar, essa ocupação de espaços. Ela é um jogo que já tá ganho, ou ainda correm riscos, como que vocês veem? Quer falar sobre isso? Camila?

 

Camila

Eu acho que, que corremos risco sempre, né? Acho que é, as lutas elas não terminam, né? A gente vive numa disputa constante de, de como narrar a deficiência, de como nomear a deficiência, de, é, onde colocar as pessoas com deficiência, é, do que autorizar ou não autorizar. É muito comum, em momentos de grandes avanços, conservadores, como a gente tem visto aí no mundo, aumentarem os ataques aos direitos das pessoas com deficiência.

Um ataque muito feito na base da nossa existência, é sempre as escolas, né, onde vão estudar as crianças com deficiência. Isso está sempre em disputa porque, se a gente se forma, se a gente tem o direito de se formar, a gente sabe onde a gente vai parar, né? Então, o projeto de impedir a gente de acessar um estudo de base, um estudo compartilhado, eu acho isso muito significativo, muito forte, muito perverso, também na, na, quando a gente está falando dos nossos direitos, né. Há pouco tempo atrás a gente tem saído também, né, nesses avanços conservadores, enfim, posicionamentos de outros líderes de outros países, nomeando a condição da deficiência com termos que não se usa desde o século, sei lá, 19! É, usando termos pejorativos, diminuindo.

Eu acho que tem uma artimanha nessas coisas, que é, por um lado, é óbvio que a nossa existência é a primeira a ser atacada. Isso a gente sabe, a gente conhece, não é a primeira existência sozinha a ser atacada, mas a nossa é a primeira. Até porque somos existências muito complexas e precisamos de muita rede de suporte, muitos de nós. No entanto, a gente ouve muito dizer, quando a gente luta pelos nossos direitos sobre dinheiro, né, então a gente ouve muito dizer que a gente é caro, que a gente precisa de muita coisa, que os recursos de acessibilidade são caros, que aí a cadeira que é cara, e aí são os equipamentos que são caros, e aí é um índice que prevê que é mais caro. Então é, o corte da nossa vida começa pelo corte de verba né, que é uma loucura de pensamento aí,  um pouco organizada. Porque, por quem quer nos tirar, né? Então a gente ainda tem essa relação com o dinheiro, que é uma coisa que eu vejo como uma espécie de mendicância contemporânea, né, é uma forma de colocar a gente pedindo esmola, é, como lá nos séculos passados né, a gente reivindica um direito, aí a galera diz, ah, mas não tem dinheiro. Não pedi dinheiro, eu estou pedindo direito, não é dinheiro! A gente fica preso nessa posição, como se a gente tivesse o tempo inteiro pedindo dinheiro. É distorcido isso né, eu acho que, enfim, isso é totalmente no cabo de guerra, assim, sabe? Vai um pouquinho, volta um tanto, a gente faz uma apreensão daqui outra de lá. Não tá ganho jamais.

 

Val

Camila, ainda falando dessa questão de tomada de espaço, no seu livro “E se experimentássemos mais”, foi lançado em 2020. Lá você propõe uma sensibilidade mais estética, não só essa, a questão arquitetônica. De lá pra cá, de 2020 para cá, você sentiu alguma mudança nesse cenário?

 

Camila

Eu acho que, eu acho que sim! Principalmente uma mudança mais teórica, de intenção do que prática. É, né, porque, o que eu quero dizer com isso, é que é muito comum a gente ver mais exposições de arte, sem acessibilidade do que com acessibilidade. Isso é normalizado, né, e as exceções ainda são as exposições acessíveis e não o contrário. Então, eu acho que. Mas também já vejo projetos quando eles existem que levam em conta, sim uma dimensão mais estética do que vem sendo proposto, porque eu acho que uma das coisas que é retirado da gente com deficiência, é um acesso à estética da vida mesmo, né.

 

Porque tem, tem a rampa, tem tudo isso que é indiscutível. Não era nem, é pra ter ponto e acabou! Assim, não vamos nem discutir isso e tal, porque, tá certo, não tenho que mexer nisso,né. Mas, mas como garantir um acesso à estética da vida, das obras de arte, mas também da vida, mas também um acesso à estética do cinema.

 

É, eu fico ainda muito, muito incomodada, né. Eu sou casada com uma pessoa que adora acompanhar os filmes que são indicados ao Oscar, e convivendo mais com Dani, a mesma coisa. A gente andou trocando aí, e já viu o filme tal, eu já vi o filme tal, tá. Como assim? Esse ano eu consegui assistir no cinema um filme que estava cotado para ser indicado porque não tem acessibilidade. É, vai ver filme como, sabe, todo mundo assistindo, tá lá, e não tem como ver! Tem que esperar sair no streaming. Aí sai no streaming, mas sai sem audiodescrição também, não é que saia com acessibilidade, e um acessibilidade, quando tem, que é essa coisa louca da nossa vida né, quando tem, que a gente fica quase agradecido por uma coisa que é ruim. Porque não é que a qualidade seja ótima não, mas é que só o fato de você conseguir ir ao cinema com sua esposa para assistir um filme que interessa todo mundo, você fica, caramba, que incrível consegui! Mas aí você para pra pensar um pouquinho, não é que a qualidade seja incrível também não. Esse é um, um acesso estético negado no mundo da arte, que é muito comum no nosso cotidiano né, e aí, mais especificamente falando de pessoas cegas agora.

 

Daniel

Ainda queria só complementar uma coisa até que a Camila começou a falar, e tem a ver com isso. Quando a gente começou a exibir o “Acessibilidade”, a gente tinha como premissa, exibir eles sempre com legenda descritiva. E isso aconteceu em todas as exibições, é, que o filme teve em, em festivais.

 

É, além disso, já desde que o filme começou a carreira em festivais, a gente tinha os outros recursos de acessibilidade, como janela de Libras, ir à audiodescrição através de um aplicativo. Mas a legenda estava sempre lá. E aí, em setembro do ano passado, agosto, setembro do ano passado, quando o filme foi lançado em circuito, e aí a gente começou a falar para as salas, né, pros exibidores, que a gente queria exibir sempre com legenda, foi uma dificuldade enorme, sabe? Muitos deles não queriam, é, exibir, porque acharam que ia ser ruim, que o público não ia entender, porque estava com legenda e etc.

 

Daniel

E acho que até dez dias antes do lançamento ainda tinha um, ainda tinha muita gente reticente em relação a isso.

 

E aí eu escrevi uma carta para esses exibidores, tipo, caro exibidor, eu sou o Daniel, eu sou o diretor do filme, do “Acessibilidade”, é importante que o filme seja exibido com legenda, por isso, isso e isso. Só depois dessa carta, é que os exibidores falaram, há, ok ele ser exibido com legenda, e, e é sempre uma dificuldade, sabe?

 

E a gente teve retornos superpositivos, né. Por exemplo, tem a Clara, é, que é personagem no filme, que é surda, ela estuda cinema URF, ela trabalha no Ancine, o “Acessibilidade” foi o primeiro filme brasileiro que ela conseguiu ver no cinema.

 

Flávia

Pois é!

 

Daniel

Porque tinha legendas, sabe? E aí, eu sempre falo isso né, quando eu posso, eu falei na premiação no festival do Rio, aí eu já falei outras vezes que, a gente né, nós produtores, diretores, distribuidores, pessoas que trabalham com cinema, a gente fica sempre querendo saber, é, cadê o cinema brasileiro, qual vai ser o futuro do cinema brasileiro?

 

E tem, e tem aí, pelo menos 10, 15, 20% da população, que nem conhece o que que é cinema brasileiro, porque não tem acesso físico, arquitetônico, ou então a necessidade de comunicação, a pessoa poder ver o filme, sabe, só botar uma legenda.

 

Flávia

Daniel, esse exemplo que você traz, eu vejo como, nossa, é uma imagem muito marcante né, você escrevendo uma carta para convencer o exibidor que é importante ter a acessibilidade.

 

É porque é você?

 

Por isso que é importante você estar nesse lugar de diretor. É o nada sobre nós sem nós. É a credibilidade, a autoridade que a gente constrói a partir, do nosso ponto de vista, da nossa percepção do que é importante, e da nossa possibilidade de apontar, e de determinar o que é imprescindível na acessibilidade. Senão, dificilmente outro diretor teria esse posicionamento nos dias de hoje. A gente está ampliando, a gente está conquistando cada vez mais aliados. Mas não dá pra abrir mão dessa máxima do nada sobre nós sem nós. E aí a gente tava falando de protagonismo, né, eu acho que tem tudo a ver com isso. É uma, uma cena nova que a gente está vivendo, e a gente ocupando esse lugar de liderança.

 

Flávia

Então, ter você como um diretor no cinema brasileiro, produzindo um filme que viaja o mundo e que atinge pessoas e provoca, oferece uma possibilidade de enxergar esse tema da sexualidade humana, a partir do seu ponto de vista, é revolucionário. Eu acho que é assim que a gente revoluciona né, estando presente e fazendo os acertos necessários na medida que o sistema se desenvolve.

 

Sem a nossa participação dificilmente isso aconteceria.

 

Camila

Sem a nossa participação, já não aconteceu né. A história do, “Ainda estou aqui”, com acessibilidade e a legenda tomou as redes sociais né. O quanto uma grande parte das pessoas surdas do país não conseguiram assistir ao filme que ganhou o Oscar. Eu acho que isso representa bastante coisa, né?

 

Flávia

Sim.

 

Daniel

E eu ainda vejo muito pouco né, muito pouco… ou até pessoas que trabalham comigo, que me conhecem sabe? E que falaram, poxa, que legal! Ter um filme com legenda e como é o filme dela, não tem, sabe?

 

Arthur

É. É isso que eu queria saber Daniel, e os pares, né, diretores, esses que você convive, produtores. Como, como, o filme transformou esse ambiente? Você tem essa, essa expectativa?

 

Daniel

Eu acho que em algum nível transformou, mas ainda é muito pouco, sabe? Ainda é muito pouco. A gente tem “n” exemplos de produções que falam sobre pessoas com deficiência que não tem nenhuma pessoa com deficiência na equipe. E essas produções em geral, ficam capacitistas, sabe? E é sempre uma, uma batalha, né, tipo, eu, o ano passado eu, eu dirigi uma série pro, pro canal Off, que ainda está inédito, e foi, foi difícil convencer as pessoas da produtora de que algumas coisas que elas queriam que eu fizesse, eram capacitistas. Eu tive que bater muito de frente. Aquilo que a Cami falou mais cedo, o que que aconteceu com a gente? Não interessa o que que aconteceu com a gente, sabe?

 

Daniel

Eu fiz um filme que tem 15 pessoas, nenhuma delas diz o que que tem, o que que aconteceu com elas, então não faz a menor diferença.

 

Arthur

Sim.

 

Daniel

E, e é aquilo né, eu falei isso aquela vez, a Cami falou agora a pouco. Isso é fetiche de pessoas sem deficiência, querer saber o que aconteceu com a gente, sabe? E foi difícil assim, fazer as pessoas entenderem.

 

O que eu sinto é que, hoje em dia, por exemplo, quando a gente fala de, quando uma mulher fala pra mim que tal atitude e tal coisa que eu falei é, foi uma atitude machista, eu tenho consciência, eu falo perdão, não, não vou repetir, e vida que segue. A mesma coisa serve pra homofobia, racismo, em todas essas formas de preconceito. Mas com o capacitismo, geralmente a a, quando eu falo tal coisa é capacitismo, tipo, botar o que que aconteceu com a pessoa na narrativa. É, que eu sei que no fim das contas vai reforçar, o estereótipo e até levar para a superação, quando eu falo isso, o cara fala, ah, mas, é, não é bem isso que eu quis dizer, sabe? Veja bem. E então parece que capacitismo ainda é visto como um preconceito menor, de alguma forma.

 

Flávia

E até autorizado né?

 

Daniel

E até autorizado. Exatamente!

 

Camila

Com certeza.

 

Daniel

E aí é isso, sabe?

 

Camila

Com certeza!

 

Daniel

Tem melhorado, mas eu gostaria de poder ver um filme que não tivesse nenhuma relação com deficiência sendo exibido com legenda, porque aí eu teria certeza de que, porra, sabe? Mudou, mudou de fato. Porque ficar só no discurso é muito fácil.

 

Camila

E isso, né, Dani, sem sessões especiais, né? Tipo, é porque às vezes acontece tal, do tipo, teve! Uma sessão, durante três meses de exibição, num sábado, na hora do almoço, é aquela coisa meio, impossível. Então, numa quinta-feira, na hora do almoço, aquela coisa fica, é, não sei.

 

Flávia

É, você não foi porque, você não quis, porque teve, né?

 

Camila

Mas teve!

 

Arthur

É.

 

Flávia

Teve naquela quinta-feira.

 

Arthur

Gente tem muita luta, né?

 

Flávia

Há…

 

Arthur

Tem muita luta, né?

 

Tem presença, de um diretor, tem presença, é, de uma mulher. E, mas tem muita luta, né?

 

Flávia

Mas é por isso que a gente está aqui!

 

Val

Isso.

 

Flávia

Para continuar lutando, para continuar trabalhando e defendendo os direitos que nós conquistamos a duras penas, com o trabalho das nossas gerações anteriores, né. A gente que veio antes da gente e que lutou para garantir esse espaço de direito que a gente ocupa hoje, de cidadania.

 

É, a gente está com o nosso tempo esgotado. Dá vontade de ficar mais uma hora conversando. Mas eu já queria caminhar para o nosso encerramento aí, passando a bola para Camila e para Daniel fazerem as últimas considerações, e darem um tchau, sabendo que assim que vocês puderem, a gente já quer repetir essa conversa, e continuar, na verdade, porque é muito bom ouvir você. É muito bom estar perto de você.

É isso Daniel…

 

Camila

Eu super topo!

 

Flávia

Ai, vamos Camila! A gente tem tanta troca pra promover.

 

Camila

Vamos repetir!

 

Flávia

A gente nem falou do Pix. Gente…

 

Val

Verdade!

 

Flávia

A Camila tem um cão guia chamado Pix, que é a coisa mais fofa desse universo.

 

Val

Ele continua ao seu lado aí, Camila?

 

Camila

Não, agora já esquentou, ele já, já espalhou.

 

Flávia

E aí a gente se educa, né, a gente sabe que não pode interferir no trabalho dele enquanto ele está trabalhando, mas aí ele dá umas olhadas tão charmosas assim, ele faz um charme sedutor.

 

A gente tem que falar depois da, da sua história com o Pix. Porque a gente tem muito aprendizado também.

 

Camila

Claro!

 

Flávia

E o Pix não é o primeiro cão-guia da Camila, ela já teve outros antes. E é uma experiência bem, bem bacana da gente conversar.

 

Val

Ela tem muita conversa por aí, né Flávia?

 

Flávia

Muita, muita!

 

Mas enfim, gente, vou, vou passar para vocês para a gente concluir e respeitar o nosso tempo e o tempo de vocês também.

 

Daniel, Daniel, eu muito sua fã! Parabéns! Parabéns por tudo até aqui, por tudo o que tem por vir.

 

Arthur

Sou muito seu fã cara.

 

Daniel

Obrigado gente! É muito bom, é muito bom estar aqui, conversar né, sobre isso, agradecer o convite.

 

Flávia

Obrigada pela generosidade de, de dividir com a gente, a sua experiência, seu ponto de vista, e nos ampliar esse olhar. Muito bom!

 

Camila

É isso gente, eu também estou muito agradecida. Acho que conversa boa não se nega. Estou aí para todas as próximas que vierem. Muito obrigado, assim, por esse momento, por produzirem este encontro. Colocarem a gente juntos aqui também, foi ótimo. Espero que os ouvintes gostem também.

 

Flávia

Um beijo, Camila, Daniel! Obrigada gente, até a próxima!

 

Arthur

Beijo gente!

 

Camila

Beijo!!

 

Val

Até a próxima. Tchau, tchau!

 

Camila

Tchau! Tchau!

 

Arthur

Tchau, tchau. Muito obrigado. Beijo.

 

VINHETA

Ficha Técnica:

 

Título do Episódio: Você consegue perceber a pessoa além da deficiência?

Convidados: Camila Alves e Daniel Gonçalves

Apresentação: Flávia Cintra, Arthur Calasans e Val Paviatti

Edição e Masterização: Uirá Vital

Transcrição: Celso Vital e Silva

Site e Plataformas Digitais: Rafael Ferraz e Fabrícia Valek