Pessoas Incluindo Pessoas

Resistência em três atos: minha história de enfrentamento do racismo e capacitismo

Racismo e capacitismo marcam a trajetória profissional
de Marco Antonio Pellegrini

Passei boa parte da minha infância e adolescência morando no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, região onde estão localizadas a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (APAE). Porém, eu não tinha ideia de como esses centros funcionavam e quem eram essas pessoas atendidas, como viviam, o que faziam. Essa distância refletia exatamente o que era naquele momento o universo da pessoa com deficiência: um mundo à parte da sociedade.

Aos 27 anos fui assaltado e levei um tiro que me levou à condição de tetraplégico. A partir daí meu lugar de fala mudou. Até então eu era um jovem negro desempenhando a função de analista de projetos no metrô de São Paulo. Passado o primeiro momento de choque, meu desafio era encontrar uma forma de seguir em frente.

E por que continuar? “Sou um jovem de 27 anos com um filho fazendo um ano e outro para nascer daqui há seis meses, com uma carreira, graduando em matemática…” Olhei aquela situação e pensei: “Poxa, se eu me aposentar agora eu não vou criar esses filhos como eu quero, minha vida não vai ser como eu sonhei. Eu preciso continuar trabalhando”.

Eu sabia o que queria, só não sabia como. Quando meus colegas de trabalho me visitavam, eu dizia: “Não esvaziem as minhas gavetas, eu vou voltar!”. Eles me olhavam quietos, mas eu lia os pensamentos: “Bom, daqui a pouco a ficha dele cai e ele vai desistir de trabalhar”.

foto antiga em preto e branco de Marco Antonio ainda criança, andando de bicicleta na rua.
Durante a infância, vivida na Vila Mariana, em São Paulo. Foto Acervo Pessoal. Créditos: Marco Antonio Pellegrini.

O meu primeiro ato de resistência foi ter prosseguido, mesmo internado, com o curso de matemática. Contando com a ajuda dos amigos de classe, que me levavam o conteúdo das aulas, fiz todas as tarefas obrigatórias e, posteriormente, fiz as provas. Eu insisti e me formei com a minha turma.

O segundo ato foi participar do nascimento do meu filho. Mesmo com uma cadeira inadequadíssima, uma escara gigante e respiração limitada, eu decidi que iria fazer com o Victor igualzinho o que eu fiz com o Pedro. Me envolvi em todo o processo: frequentei as últimas consultas, os preparativos, esperei ele nascer, estive presente no primeiro banho quando ele chegou no quarto, sai do hospital com ele em meu colo, exatamente como tinha sido com o Pedro. Isso foi extremamente importante, foi uma autoafirmação, me manteve vivo.

Existiam poucas políticas públicas e muito preconceito. O segundo eu conhecia bastante, mas por já ter enfrentado muitas situações de racismo, eu tinha desenvolvido estratégias que me serviram naquele momento.

A luta pela igualdade de oportunidades

Quando iniciei meu trabalho no Metrô, estavam esperando um analista de projetos e se surpreendiam com a chegada de um negro. Não era e (não é) comum uma pessoa negra ocupar este espaço.

Eu venho de uma família muito humilde, uma família de negros, somos quatro irmãos. Estudei em escolas com mais de mil alunos e não mais que quatro alunos negros. Nas empresas que trabalhei, eu era o único negro. Por conta disso, tive que me afirmar, desenvolvi estratégias para impor respeito. Aprendi a não deixa a discriminação me parar. Isso foi importante porque entendi que quem discrimina, geralmente discrimina qualquer um.

Comecei o ano de 1992 afastado da empresa e fui fazer reabilitação no Instituto de Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IMREA). O período máximo de afastamento que a empresa permitia era de três anos. O afastamento se encerrava com uma definição: aposentadoria ou reabilitação do trabalho. Nesse prazo, fui (re)conhecendo, os limites do meu corpo e as tecnologias existentes. “Afinal o que um tetra é capaz de fazer?”

E aí veio um terceiro momento de resistência.  Entrei para o movimento de luta das pessoas com deficiência. Conheci pessoas como Lia Crespo, Elza Ambrósio, Marisa Paro, Ana Rita de Paula, Rui Bianchi, Cida Fukai, Daniel Loeb, Alexandre Baroni, Izabel Maior, Romeu Sassaki, entre outros. Era um grupo que estudava sobre as questões da deficiência e, naquele momento começou explorar muitos temas de vida independente.

Foto de um auditório, com mesa no palco e cinco pessoas.
Em evento realizado no Centro de Vida Independente de Curitiba. Foto: Acervo Pessoal. Créditos: Marco Antonio Pellegrini

O Movimento Vida Independente

O conceito, vindo do Estados Unidos, pregava que mesmo com deficiência severa, a pessoa tem o direito a fazer as suas escolhas. Esse é o fundamento da filosofia de vida independente, talvez o mais importante da minha vida. Fundamos o Centro de Vida Independente (CVI) Araci Nallin, onde desenvolvemos muitas ações de enfrentamento ao preconceito e ao desconhecimento. Nesse período, Romeu Sassaki trouxe a novidade do Emprego com Apoio e criamos um grupo de estudo sobre o tema. Eu nem imaginava que essa seria a ferramenta efetiva para o meu retorno ao trabalho.

Era um mundo sem internet, sem essa velocidade da informação. O Brasil não produzia cadeiras de rodas motorizadas, não tinha nenhuma sofisticação em tecnologia para pessoas com deficiência. Mas, eu descobri e fui conhecer uma feira: a Feira Rehacare, em Dusseldorf, na Alemanha. Nessa feira, encontrei a minha saída: uma cadeira motorizada com controle no queixo que me dava autonomia. Eu ia, finalmente, poder me deslocar para onde eu quisesse.

O retorno ao trabalho

Passados três anos, um invento que produzi com ajuda dos amigos ampliou minha autonomia: uma haste presa a minha boca e o computador, um notebook fixado na cadeira de rodas. Assim, eu podia digitar diretamente e consegui, finalmente, voltar a usar o computador.

Cheguei ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) equipado com a cadeira motorizada, o computador e a mesinha. O médico chamou outros colegas e, juntos, ficaram explorando como eu fazia as coisas. Nesse dia, tomaram a atitude de ligar para o metrô e dizer: “Olha tem um sujeito aqui, tetraplégico, assim e assim assado (eles respondiam: sim, colega nosso aqui). Ele quer retornar ao trabalho, podemos dar início?”. Assim, retornei o trabalho.  

Eu, tetraplégico, reassumindo as minhas funções no metrô. Isso apavorava todos, pois se não desse certo, pensavam “o que nós vamos fazer com esse cara?”. A reabilitação profissional é um ato administrativo irreversível. Eu assumi e enfrentei o risco.  Eu só queria voltar a trabalhar.

Um novo jeito de trabalhar

Meu retorno definitivo dependia de um processo de três meses, prorrogado por mais três meses, um estágio. Nesse momento entrou em ação uma figura definitiva: a Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais (AME). Havia o desejo de me trazer de volta ao trabalho, mas ninguém sabia como. Foi aí que um dos responsáveis por esse reintegração, com muita sabedoria, chamou o Romeu Sassaki.

Foram feitos o mapeamento das tarefas que eu fazia antes e uma proposta do que era possível retomar na minha nova condição. A empresa aprovou a metodologia em reunião de diretoria e a implementou em suas normas.                     

As adaptações necessárias e a vinda de uma pessoa para me apoiar o tempo todo quebrou paradigmas. Ter um horário diferenciado que me permitisse fazer parte do trabalho presencialmente e outra em home office para poder cuidar da saúde também foi de extrema importância.

Os colegas foram me reconhecendo. Então as questões que pareciam muito difíceis no começo, deixaram de ser. De repente, a gente estava, novamente, saindo para almoçar juntos e não só aquilo que estava planilhado. Estávamos apenas vivendo.

Oportunidades e possibilidades

Chegou uma hora que perdeu a importância o quanto eu era capaz de escrever com autonomia. Foi sendo evidenciada a minha capacidade e a deficiência começava a ser apenas mais uma característica minha. Nesta época fui chefiar a equipe de implementação de melhorias nos prédios administrativos do Metrô. Eu estava novamente na linha de frente, ali ao lado dos meus equipamentos, junto com minha equipe e enfrentando desafios.

O metrô assumiu o compromisso de cumprir a lei de cotas e ter em seu quadro 5% de trabalhadores com deficiência. Nessa esteira, iniciamos a implementação de soluções de acessibilidade no sistema do Metrô. Em conjunto com a AME, desenvolvemos o modelo em que as pessoas com deficiência são recebidas na estação, utilizam elevadores, rampas e piso tátil, além de um receptivo de apoio para embarque e desembarque.

Durante evento da ONU realizado na Colômbia em 2017, assinando um termo de cooperação bilateral. Foto: Acervo Pessoal. Créditos: Marco Antonio Pellegrini

Esse processo foi um momento extremamente rico. Eu, me aprofundei nos estudos de acessibilidade e a passei a auxiliar na colocação de vários colegas com deficiência e na reabilitação profissional daqueles que se acidentavam.

Em 2008, a convite da Dra. Linamara Rizzo Battistella, então secretária de estado dos direitos da pessoa com deficiência, fui convidado a compor sua equipe no Governo do Estado de São Paulo, o que me trouxe diversas oportunidades na elaboração e implantação de políticas públicas de combate à discriminação e ao preconceito.

Escrever este artigo me dá oportunidade de revisitar não apenas a minha história, mas as tantas transformações que estão mudando a nossa sociedade. E reafirmar que só por intermédio dele, o trabalho, que se constrói um projeto de humanidade sustentável. Para isto, precisamos de uma educação que leve ao trabalho. É por meio do trabalho que a grande maioria de nós consegue concretizar os seus sonhos e os seus desejos.

A possibilidade de trabalhar torna possível uma vida

que vale a pena ser vivida.

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19/11/2021

Escrito por: Marco Antonio Pellegrini