Luiza Russo, Diretora Executiva do Instituto Paradigma
Durante as duas últimas semanas assistimos, incrédulos, e em tempo real, a invasão russa na Ucrânia e as terríveis consequências que afetam a todos nós. Aos ucranianos, primeiramente, a guerra traz um impacto emocional e devastador nas suas rotinas de vida, onde de uma hora para outra se perde tudo: a integridade física; os laços com a terra, com parentes e amigos; conquistas pessoais e coletivas, restando somente a humilhante posição de buscar um espaço de paz para lamentar, descansar e renovar suas forças no sentido de que é preciso reconstruir um novo futuro.
Mobilizados pelos sentimentos de empatia com o sofrimento dessas pessoas, tentamos digerir a barbárie através do bombardeio de informações de toda ordem, usando o bom senso na análise dos fatos. Nos salta aos olhos a dimensão do poder personificada em poucos personagens que tomam decisões que envolvem o destino da nossa humanidade. Tudo muito surreal.
Nesta perspectiva surrealista, penso nas crianças. Até poucos dias atrás, elas frequentavam a escola e conviviam com seus pares de brincadeiras, achando que os seus medos mais concretos se materializaram no desafio da pandemia da covid-19 a ser vencida por todos, mas sentindo-se protegidas pelos adultos que as cercavam e pela chegada da vacina.
Hoje, em mais uma rodada de notícias sobre esta guerra insana, me deparei com o esforço de um grupo de mães de crianças com deficiência e de profissionais de duas instituições de Kiev deslocando crianças com deficiências graves e órfãos. O grupo enfrentava o cenário apocalíptico com aqueles jovens inocentes para alcançar um vagão de trem que os levariam a salvo para a Eslováquia, atravessando a Polônia para serem acolhidos em outras instituições e serviços especializados.
Mães aflitas com seus filhos em cadeiras de roda, macas ou apoiados em outros adultos para que se locomovessem mais rapidamente. Crianças e adolescentes aflitos, abrigados no abraço ou no colo de suas mães, acalentando o seu choro e o balanço de seus corpos tensos, arredios ao barulho, ao tumultuo e à sensação de medo eminente. Vi também a mãe de um jovem rapazinho relatar ao repórter, aos prantos, que precisava levá-lo para um lugar tranquilo, pois tinha autismo e já havia sofrido com a separação de seu pai. Enquanto a mãe relatava seu drama, o menino acariciava os cabelos da mãe e dizia “vai dar tudo certo”.
Além dessa tragédia, a reportagem mostrava pais despedindo-se dos filhos que, proibidos de deixar o país, seguem como único destino a luta armada. Mesmo assim, esses homens buscavam encorajar suas parceiras e seus filhos para a dura jornada, prometendo um encontro em breve.
Com meus olhos turvos pelas lágrimas, ainda vejo cenas dos subterrâneos do metrô de Kiev cheio de crianças e mulheres desorientadas sem entender o atual cenário, tentando descobrir quais alternativas lhes restariam. Muitas choravam e buscavam na multidão rostos conhecidos para encorajá-las.
Mães parindo nos porões dos hospitais tentam, com apoio das equipes médicas, proteger os recém-nascidos que chegam ao mundo neste caos. O que assistimos hoje mais se parece uma tragédia da Ilíada de Homero, onde os sentimentos contraditórios se assemelham aos de Aquiles, com o descontrole de sua ira desordenada e as angústias do que a guerra deixou de herança.
Quando deixaremos de presenciar e conviver com a desumanização da nossa sociedade, que tanto lutou por direitos, pelos valores democráticos, buscando em seus discursos enfatizar que somos todos irmãos da mesma espécie?
Que mundo é este que estamos preparando? Será que devemos contar apenas com a oração e a graça divina? Qual seria o nosso primeiro passo para sairmos desse marasmo onde autorizamos, com o nosso silêncio, alguns poucos a decidirem sobre o nosso direito a vida?