Foto: Acervo Pessoal. Créditos: Diego Padgurschi
Por Elsa Villon
O Dia da Cultura e da Ciência, celebrado em 5 de novembro, foi instituído em 15 de maio de 1970, pela Lei nº 5.579, em uma homenagem a Rui Barbosa. A cultura e a ciência também andam lado a lado na vida de Vanessa Romanelli.
Nascida e criada em São Paulo, capital, desde os cinco anos ela já tinha em mente qual seria a profissão: “Enquanto falavam que seriam professoras ou jogadores de futebol, eu sempre falei que seria cientista”. Foi nessa idade que os seus pais notaram os primeiros sintomas da Atrofia Muscular Espinhal (AME), condição genética que pode causar redução de mobilidade. Aos sete, veio o diagnóstico.
Ela relembra como surgiu seu interesse pela genética: “Quando eu fiz 15 anos, passei por uma consulta genética por conta da deficiência que tenho. Conversando com a médica, eu entendi que queria seguir na área”. Enquanto isso, cursava o ensino médio e técnico em patologia clínica e já trabalhava em laboratórios de hospitais.
Quando ingressou na USP em biologia, Vanessa logo buscou se integrar a grupos de pesquisa relacionados à genética. Na mesma época, também começou a usar cadeira de rodas. De universitária de biologia a pós-doutora em genética pela Universidade de São Paulo (USP), Vanessa conquistou seu espaço dentro da ciência.
Atualmente, ela trabalha como assessora científica no Instituto Jô Clemente, organização que atua na inclusão e promoção de equidade na deficiência intelectual. E também é atriz e atua pela Oficina dos Menestreis, com o grupo Mix Menestreis.
O amor pelo teatro
O interesse pelo teatro surgiu na época da faculdade, quando assistiu a um espetáculo da Oficina dos Menestreis. “Conheci o grupo de teatro com cadeirantes, pessoas com deficiência visual e andantes. Assisti a uma peça deles, me apaixonei e pedi para o diretor me integrar. E assim fiquei no teatro musical por anos”, conta.
Como atriz, já fez parte de sete musicais pela Oficina dos Menestreis. E os palcos do teatro lhe renderam mais do que apresentações com a companhia: ela foi convidada para fazer testes, no Rio de Janeiro, para a novela “Viver a Vida”, do autor Manoel Carlos. Na trama, veiculada em 2010, na TV Globo, ela interpretou Camila, uma personagem que também tinha AME e contracenava com a atriz Alinne Moraes.
A oportunidade é um marco importante não só como atriz, mas como cientista, pois foi a oportunidade de trazer para o horário nobre a condição genética da AME de uma forma não paternalista. “Veio uma questão muito importante, que é poder falar sobre inclusão e pessoas com deficiência, sem ter que necessariamente levantar a bandeira e falar sobre a deficiência e abordar questões cotidianas, como a sexualidade, por exemplo”.
Entre a cultura e a ciência
Depois de bióloga formada, Vanessa precisou conciliar seus estudos no mestrado e monitorias em genética para estudantes de medicina com os ensaios dos espetáculos, que aconteciam aos fins de semana. E diz que houve momentos de sobreposição entre as duas atividades: “A minha prova de ingresso no mestrado caiu bem na data de estreia de um espetáculo. Tivemos um período de ensaio intenso no teatro, e na hora que o diretor dava um intervalo para descansarmos, eu pegava as apostilas da faculdade e estudava para a prova”.
Também para atuar na novela “Viver a Vida”, precisou conversar com a chefe, explicando que era uma oportunidade única, e conseguiu negociar as idas para o Rio de Janeiro nos dias de gravação. Sobre o período de testes, ela se recorda: “Eu estava na aula com eles de manhã, saía para fazer o teste e voltava para dar aula de novo”.
Com relação às peças, ela afirma que a dinâmica era mais simples, pelo próprio formato mais livre da Oficina dos Menestreis. Por não ser uma escola formal, com a proposta de formar atores, a ideia é permitir que qualquer pessoa tenha uma oportunidade na arte, independentemente da área de atuação.
Entre laboratórios, salas de aula, palcos e sets de gravação, Vanessa se dividiu para seguir com a ciência e a arte e afirma que é possível fazer as duas coisas, desde que haja disciplina e energia. “Houve um momento em que eu precisei pausar, no final do meu doutorado, em 2017. Então eu deixei de montar duas novas peças com a companhia. Mas como sempre tinha reapresentação de alguma outra peça, seja para o público geral ou para empresas específicas que, às vezes, contratavam o espetáculo, eu participava delas”, pontua.
Dos laboratórios para os palcos
Além do papel na novela, Vanessa também recorda de um espetáculo importante na sua jornada como atriz amadora: “A Mansão de Miss Jane”, história sobre uma senhora falida que é surda e enfrenta problemas financeiros em sua mansão, que estreou em 2010.
Outro ponto alto foi uma peça com o Cia Mix Menestréis, que foi para a final de um edital da FUNART, em Brasília. Para ela, o espetáculo teve uma representação bastante importante por incluir cadeirantes, pessoas com deficiência visual e andantes representados em um edital tão importante para a cultura e a arte.
A Oficina dos Menestreis é dirigida hoje por Deto Montenegro, com espetáculos de Oswaldo Montenegro e Candé Brandão, e oferece cursos livres musicais para todo o público. Além disso, tem projetos sociais voltados para grupos específicos, como o Projeto Cadeirantes ou Mix Menestreis. Nele, há peças só com cadeirantes, peças com cadeirantes e pessoas com outras deficiências e sem deficiência. Os demais projetos são: o Grupo Aut, para pessoas com Autismo; o Projeto Up, para crianças com síndrome de down; e o Maturidade, para pessoas com mais de 60 anos.
Por conta da pandemia, não há apresentações no momento, mas Vanessa acredita que, a partir do ano que vem, surjam novidades com um novo espetáculo, ainda inédito, que contará com a sua participação: “Quero voltar a atuar assim que for possível”.
Sobre as inspirações dentro da cultura, ela menciona o ator Mateus Solano, com quem também contracenou em “Viver a vida” e acompanhou no teatro, assim como o diretor Deto Montenegro, com quem trabalha na Cia. Mix Menestreis, toda a equipe no grupo, e a atriz Tabata Contri, que também é cadeirante.
As conquistas na ciência
Em sua trajetória científica, ela destaca a publicação do seu pós-doutorado, no qual estudou a AME com a Dra. Mayana Zatz, diretora do Centro de Genoma Humano da USP. Seu trabalho é uma avaliação do cenário da implementação da triagem neonatal em países que ainda não o fizeram. De acordo com Vanessa, existem vários projetos que implementaram o teste do pezinho da AME, como os Estados Unidos, a Austrália e alguns países da Europa, mas isso ainda não aconteceu na América Latina.
Ela destaca a Lei Federal nº 14.154, de 26 de maio de 2021, que inclui a AME na quinta fase de escalonamento da expansão do teste do pezinho, em que o Sistema Único de Saúde (SUS) vai expandir para mais 53 doenças identificáveis pelo exame.
“No meu projeto, nós fizemos uma avaliação comparando diferentes testes para dizer os prós e os contras, e comparando custos necessários para implementar o novo teste. É muito importante que haja um alinhamento das esferas federal, estadual e municipal para que isso seja feito de uma forma efetiva e a criança não só seja identificada, como tenha um tratamento adequado. Porque o mais importante no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) é o tratamento precoce”, afirma. É possível acompanhar o desdobramento de sua pesquisa pelo seu perfil no Instagram.
Barreiras ao longo da trajetória
Vanessa enfrentou obstáculos ao longo da trajetória acadêmica, principalmente as atitudinais e o preconceito por ser mulher: “Encontrei pessoas nessa minha trajetória científica, inclusive pessoas que foram supervisoras ou chefes, que disseram que eu não poderia ser cientista por ser cadeirante, ou colocaram obstáculos, dizendo que a minha cadeira era muito grande. Ou, ainda, acharam que eu não ia conseguir e eu precisar provar duas vezes mais do que uma pessoa com o mesmo currículo que o meu”.
Ela também destaca as barreiras arquitetônicas enfrentadas em um laboratório sem acessibilidade, com dois lances de escada, que a colocavam na posição de ter que pedir ajuda e ser carregada escada acima para ter acesso ao local de trabalho.
“Os obstáculos foram bastante significativos e temos que trabalhar muito a mente para passar por tudo isso. Eu cheguei a quase desistir da minha profissão várias vezes, mas acho que a vontade de fazer ciência pelo bem de todos é muito mais forte e me impediu de abandonar a carreira”, menciona.
No campo da cultura e, principalmente, das artes cênicas, ela defende que há pouco incentivo. Mesmo sem o registro como atriz profissional – o DRT –, ela afirma que amigas atrizes e cadeirantes enfrentam problemas na profissão, devido ao próprio modelo comercial que a publicidade espera mostrar para as pessoas. “É muito difícil você conseguir uma oportunidade que não seja para um papel específico de mulher com deficiência. Se há um casting aberto para um determinado público e você é cadeirante, é descartado logo de cara”, ressalta.
Para ela, de forma geral, e principalmente na televisão, não há inclusão para cadeirantes, e quem conseguiu conquistar seu espaço nesse meio é vitorioso. Já no teatro, Vanessa acredita que há uma abertura um pouco maior, mesmo com o preconceito relatado por pessoas que frequentam ou frequentaram escolas de artes. Contudo, ela afirma que a publicidade vem mudando isso: “Vemos que grandes empresas já têm aberto e incluído pessoas com deficiência, principalmente pelo Instagram, grandes marcas contratando influenciadoras com deficiência para fazer a propaganda”.
Projetos para o futuro
Um dos planos de Vanessa como cientista é poder realizar estudos no exterior. Ela afirma que também há barreiras para cadeirantes participarem da comunidade acadêmica em outras cidades e países, como a falta de recursos para acompanhantes em viagens a congressos e de acessibilidade em hotéis.
“Quando você tem uma deficiência, às vezes precisa de uma pessoa para te acompanhar em viagens, e as bolsas não cobrem esses custos”. Quando precisava viajar, ela contava com o apoio de amigas de laboratório que também conseguiram bolsa e a ajudariam durante a estadia.
Ela também prevê como planos o lançamento de dois cursos dentro da ciência para o ano que vem, voltados à capacitação de inclusão de pessoas com deficiência no ensino, realizados por meio de parcerias. Além disso, deseja continuar contribuindo para a expansão do teste do pezinho no Brasil e para a implementação da lei federal.
Vanessa afirma que há muitos pesquisadores que admira e defende que não se faz pesquisa de forma única. “Precisamos estabelecer colaborações que de fato façam com que aquele projeto se reverta para benefício da população, principalmente para a saúde pública, que nós estamos precisando tanto no Brasil. Nesse sentido, destaco todos os pesquisadores que realmente transformam o seu trabalho em algo maior, que não trazem o seu trabalho para benefício próprio, mas para questão de implementar benefícios para a saúde pública do nosso país”, enfatiza.
Por fim, ela deixa a dica para as pessoas com deficiência que buscam trilhar uma carreira, seja na cultura ou na ciência: nunca deixar que ninguém te diga não sem ter uma boa argumentação. “Acredite no seu potencial. Pode parecer um pouco clichê, mas em toda carreira vivenciamos diversos ‘nãos’ e o importante é entender se esse é um ‘não’ real, de algo que você pode fazer para mudar e melhorar, ou se é simplesmente um ‘não’ por não existir essa oportunidade, ou por preconceito. Dessa forma é possível se estruturar, criar uma estrutura física e emocional para ultrapassar todos os desafios que virão nessa jornada. E entender que independentemente da sua deficiência, você pode oferecer um serviço de qualidade e fazer as pessoas enxergarem isso”.