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O artista e escritor João Carlos Pecci em sua casa em São Paulo. (Foto: Arthur Calasans)

A história de João Carlos Pecci

Por Arthur Calasans

Levei muito tempo para marcar a entrevista com João Carlos Pecci. Joao é escritor, poeta, artista plástico, letrista e irmão do Toquinho, músico que admiro e encontrei quando tinha sete anos de idade. A certeza desse encontro foi a mesma que li no livro Minha profissão é andar, constatar que João Carlos Pecci é uma pessoa muito amorosa. Todos que conhecem ou conheceram João dizem isso. E foi esse mesmo sentimento que tive no tempo que fiquei com ele em sua casa no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Quem conversa com ele, tem o desejo de ser seu amigo.  O seu ato, a sua força, as suas histórias, escritas em vários livros, levaram conhecimento e diferentes perspectivas de se enfrentar uma situação dramática como a que João viveu com 26 anos de idade.

 

Um acidente de automóvel na via Dutra, em 1968, o tornou uma pessoa com deficiência física. A partir daí, despertou nele uma nova forma de viver a vida. Aprofundou-se, como autodidata, pelos caminhos da pintura. Evoluiu como artista. Em 1985 casou-se com Márcia. Essa união ficou ainda mais consolidada com o nascimento de Marina, em 1996, fruto de uma gravidez conseguida por meio de uma auto-inseminação, fato inédito, até então, no Brasil, sendo, o homem, uma pessoa com deficiência física.

 

Assim como seus ombros a casa onde vive João Carlos Pecci tem portas largas, foi construída pelo seu irmão, o músico Toquinho. “Ele fazia os shows e colocava o dinheiro aqui, em 4 anos ele subiu essa casa”. Uma casa toda acessível em 1978 era um feito inédito no Brasil. O ineditismo faz parte da vida de João, ele abre portas, quebra paradigmas com a certeza e o compromisso de muita gente vivendo as mesmas questões. São tantos os temas que foram tocados por João, sempre com muita generosidade e delicadeza: o corpo da pessoa com deficiência física, sexualidade, acessibilidade, relacionamento, vida independente…

 

“Quando construímos essa casa ninguém entendia a necessidade de pisos planos, barras, portas e banheiros que pudessem permitir que qualquer pessoa habitasse esse espaço. Antônio e João são irmãos que se admiram, descobriram muito cedo o valor do amor em suas vidas. Na primeira vez que Toquinho entrou no quarto onde João vivia a parte mais dura de sua vida, no lugar do medo e da tristeza, o violão e as memórias de Itapuã. Vinicius falava bem perto do seu ouvido. Nós entramos em uma sala, um escritório, fechamos a porta de correr.  João estava em uma cadeira de rodas automática com elevação.

 

__ Arthur, eu vou ficar em pé, tudo bem?

 

Concordei, disse que também ficaria em pé e seguimos frente a frente, olho no olho. As paredes da casa de João refletem a casa de um artista. Linhas, formas, cores, retângulos, quadrados, paralelas e perpendiculares. Um enorme quadro da Márcia, sua esposa, e dois quadros do pintor Otavio Araújo celebram a arte com o belíssimo desenho com grafite sobre papel.

 

Enquanto João contava a sua história eu viajava pelas telas pintadas por ele. Três quadros ficavam na minha frente: A Família, o Veleiro e o Cata-Vento.  Quadros autorais do artista Pecci, como assina suas obras. Seus quadros são inspirados na técnica usada pelo pintor Victor Vasarely.  Vasarely tinha uma fascínio por padrões lineares, seus quadros são uma variação do expressionismo abstrato.

 

“A arte na minha vida é um momento de liberdade, de chamar todos para roda, de inventar novos mundos diversos, foi como me inclui no mundo”. Fiz  várias exposições individuais e coletivas, a pintura se tonou um trabalho, uma brincadeira vibrante e gostosa, uma necessidade cotidiana, um amor a mais em minha vida”.

 

A arte entrou na vida de João como uma forma de abstrair a realidade e de se libertar. A arte liberta esse menino do Bom Retiro, esse ponta direita corintiano que desbravava os campos de várzea da cidade. “Tive uma infância livre, morava na rua Anhaia, perto da várzea, com muitos campos de futebol. Estava sempre cercado de muitos amigos. Era uma época em que os moradores de uma rua se conheciam, se visitavam, formavam uma autêntica família. Aquela rua favorecia, jogo de botão, bolinha de gude, pião, carrinho de rolimã. Esse menino me fez crescer um adulto feliz e otimista, valorizando a vida através do amor e do carinho recebido dos pais e dos amigos, apaixonado por praias e futebol, namorador e muito romântico”.

 

A vida de João como pessoa com deficiência foi ocupada por escrever e contar a sua história por todos os cantos do Brasil. E foi assim no primeiro grande evento que reuniu pessoas com deficiência de todo Brasil. O Def Rio 95. “O luxuoso hotel intercontinental nunca tinha visto tantas pessoas com deficiência em suas instalações. Foi um choque de realidade para quem estava hospedado no hotel, na recepção, nos quartos, no restaurante e principalmente na piscina. Entre um Seminário e outro curtimos a piscina do Intercontinental junto com os amigos. Lembro das pessoas olhando para nós curiosas e algumas até impressionadas com nossas conversas e a felicidade daquele encontro. Foi realmente um grande momento, naquela semana reuniram-se os principais representantes do movimento de Vida Independente do Brasil da Época, o Evento foi no formato de Congresso sobre CVIs (Centros de Vida Independente) inspirados nos movimentos dos Estados Unidos.

 

Eu e Márcia, viajamos de carro de São Paulo até o Rio de Janeiro para esse grande evento. O seminário onde participei foi marcante na minha vida. Foi uma semana que passamos muito bem, eu pude conviver mais de perto com o Fabiano Puhlmann, a Flavia Cintra,  a Rosangela Berman, o saudoso Romeu Sasaki e várias pessoas que trabalhavam pela inclusão da pessoa com deficiência naquele momento no Brasil. Esse encontro foi memorável. Nessa época, há mais de um ano, Márcia e João tentavam engravidar usando o método de auto-inseminação.

 

“Quando voltamos do Rio de Janeiro, depois de uma semana de Def Rio, dirigia meu carro pela Rodovia Presidente Dutra, a mesma rodovia onde sofri o acidente que mudaria a minha vida em 1968. Voltávamos tranquilos, conversando sobre as experiências que vivemos no evento e levamos um grande susto! Uma pedra foi arremessada pelo pneu de um caminhão direto no para-brisa do carro. Eu não acredito em acontecimentos que não tenham um significado, por isso, parei o carro. Para nossa surpresa estávamos na Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Olhei para Márcia e disse: Vamos até lá! Entramos naquele prédio enorme. Me lembro que rezei e pedi muito a Deus com toda a minha fé. Desejei muito a paternidade.  A deficiência me fez descobrir outras facetas do amor e da compreensão das diferenças. Quando chegamos em casa, em São Paulo, tentamos mais uma vez a auto-inseminação. Algumas semanas depois descobrimos que a Márcia estava grávida da Marina. No dia 30 de outubro de 1995. Nove meses depois nascia Marina”.

 

No mundo, são poucos os homens com alguma lesão medular que conseguiram gerar um filho por meio da auto-inseminação. Toda essa trama de amor foi relatada no livro Velejando a Vida (Editora Saraiva – 1998), onde João conta com emoção essa trajetória em busca da paternidade. Pecci é um corpo diferente, uma cabeça preservada pelo silêncio, nunca pela solidão. Houve muito apoio e liberdade para ele ser o que ele é hoje. Nas telas pintadas por Pecci sempre tiveram muitos veleiros, as velas sempre cheias de vento, de ar cortando o mar em liberdade.

 

No final desse encontro convidei o João para fazer um retrato dele que pudesse ilustrar esse texto. Na minha cabeça a dúvida: Como uma imagem poderia representar esse homem. Não há imagem solitária, sem palavras, que represente o João. Fiz dois retratos, um na garagem, com a cadeira elevada e um sorriso cheio de encantamento e outro na porta de sua casa, com o livro Minha Profissão é Andar em suas mãos.

 

__ Arthur você pode fotografar esse quadro para mim?

__ Claro que sim João!

__ O Veleiro?

__ Sim

 

Fiz a fotografia do veleiro e no mesmo dia enviei em uma mensagem para o João.  Rapidamente ele me respondeu:

__ Obrigado, ficou muito legal!

 

Na rede social do João fui conferir nossa amizade e me deparei com a fotografia do quadro do veleiro à venda e esse lindo poema.

Ao velejar somos súditos do mar. Contemplando sua vastidão fico preso à querências e vontades.  

Quero um porto e uma taça de Porto. Quero um grito, um hino.  

Um sino que toque Jobim. 

Um piano que me leve “lontano”, um ano curto de muitos curtos-circuitos. 

Um atrito com a pétala, a dose completa de cortesias 

Quero a esquina que não dobre; um nobre de chinelos. 

Os azuis de Renoir, um pé de manacá.  

Quero o cristo de Dali; minhas pernas outra vez aqui. 

Com elas quero areia de praia, um caia e não caia  

Sem eira nem beira na beira do penhasco. 

Um ir e vir, e não cair, e voar sobre o mar… 

Do coco quero a polpa e a quentura da sopa de feijão. 

Quero o tesão da alvorada e uma chuvarada de verão. 

A sina da saudade, a mina de sonhos. 

A poesia do silêncio e o não-senso da meia luz do quarto… 

De hora nos braços de quem se ama. 

__João, você já velejou?

__Não, Arthur.

Esse João Carlos Pecci é velejador da arte, da vida e das emoções!

Agradecimento ao blog Cantinho da Leitura

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