Rosangela Berman Bieler: “Se o movimento não estiver pautado pelos direitos humanos, não gera o que tem que gerar” 

Foto: acervo pessoal. Créditos: Rosangela Berman Bieler

 

Por Elsa Villon

 

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”  Esse é o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU).  

 

Dois anos depois, o Dia Internacional dos Direitos humanos passa a ser celebrado em 10 de dezembro como forma de reafirmar todos os artigos estabelecidos, assim como reivindicar novos direitos ainda não instituídos, com um tema diferente a cada ano. Em 2021, o tema será “Igualdade – Reduzindo as desigualdades, avançando os direitos humanos”. 

 

Mas, quando se fala de inclusão de pessoas com deficiência, nem sempre foi assim. Foi preciso uma articulação maior para que os direitos essenciais dessa população fossem assegurados. Para Rosangela Berman Bieler, líder global em deficiência pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o marco histórico dessa luta foi o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência, em 1981, quando ocorreu uma aproximação entre governos e pessoas com deficiência para que se pudesse discutir qual era a situação dessas pessoas em todo o mundo. 

 

No Brasil, a Constituição de 1988 foi outro momento importante. “Foi quando o movimento de pessoas com deficiência conseguiu participar do processo de elaboração do texto da Constituição Brasileira, que envolveu a questão da deficiência não como um artigo, mas em todos os aspectos e pontos da Constituição existia como se aplicava às pessoas com deficiência”, relembra. 

 

Outros marcos legais representativos

 

Rosangela destaca a Lei Brasileira de Inclusão – LBI, assim como a criação da Coordenadoria Nacional da Pessoa com Deficiência (CORDE), que originou o Conselho Nacional das Pessoas com Deficiência – CONADE e organizou o país também em níveis municipal, estadual e federal por meio de encontros nacionais: “Muitas leis começaram a surgir, não só leis de direitos e de acessibilidade, mas também lei de cotas para trabalho e a relação com o Ministério Público”. 

 

O Movimento de Vida Independente, que surgiu no Brasil no final dos anos 1980, também merece destaque. A articulação começou no Rio de Janeiro e em São Paulo e foi se espalhando pelo país, o que trouxe uma nova dimensão para o ativismo das pessoas com deficiência, de acordo com a líder. 

 

Ela também menciona a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em 2006, com um impacto global nessa área e foi ratificada por 180 países, incluindo o Brasil. Isso impulsionou uma articulação para que a Convenção fosse adotada com status constitucional no país. 

 

O reconhecimento da educação inclusiva foi outro ponto determinante, com a proibição de escolas públicas e privadas a negarem a matrícula de estudantes com deficiência. “Isso representa uma revolução. Infelizmente, essa revolução pode ser barrada a qualquer instante por uma lei”, afirma. 

 

A importância da data no enfrentamento de barreiras

 

Assim como o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, o Dia Internacional dos Direitos Humanos traz visibilidade para essa população, principalmente por conta do vínculo entre pobreza e deficiência. “As pessoas pobres não têm acesso à água, nutrição, educação, saúde e, por isso, quando sobrevivem, não têm acesso ao trabalho e trazem menos recursos para seus lares. Em famílias com pessoas com deficiência, pelo menos duas pessoas estarão fora do mercado de trabalho. A pobreza é sempre um fator muito primordial, porque se a pessoa tem recursos, vai ter condições de eliminar a maioria dos impedimentos”, comenta.  

 

Além disso, ela afirma que as barreiras são reforçadas ou não pelas instituições, inclusive as políticas: “Os primeiros impedimentos que informam e formam todas as outras barreiras são os atitudinais. O estigma e a discriminação fazem parte da cultura humana, você discriminar quem é diferente, excluir ou diferenciar”, pontua. 

 

De acordo com Rosangela, o olhar do outro determina que as cidades sejam construídas sem levar em conta a acessibilidade, que a comunicação seja feita de uma maneira que não considere a diversidade das pessoas em todos os âmbitos, entre outras barreiras. Ela afirma que não é possível avançar em nenhuma área sem trabalhar para erradicar esse olhar excludente. “Sempre que avançamos em uma área, precisamos acompanhá-la com um trabalho de conscientização e educação para a diversidade. Essa é uma questão fundamental.” 

 

As conquistas coletivas durante a Convenção da ONU

 

Quando questionada sobre quais nomes ela considera fundamentais na luta pelos direitos das pessoas com deficiência, Rosangela é enfática: “são muitos, impossíveis de contar”, por conta de toda a articulação ao longo das décadas e no momento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 

 

“Eu vi como isso não foi um movimento de uma ou duas pessoas. O desenvolvimento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, envolveu muitas pessoas e determinou tanta coisa, como a Aliança Global pela Deficiência. Naquele momento, cada um dos embaixadores representantes de países diferentes contribuiu muito”, diz ela, lembrando que foi a primeira vez que uma Convenção da ONU reuniu pessoas com deficiência desde o início do processo. 

 

“Eu mesma participei, desenvolvendo com outros boletins diários do que acontecia e mandando para as pessoas que não podiam participar lá em Nova York”, conta, lembrando da participação coletiva de pessoas da América Latina que, à distância, contribuíram para a elaboração do texto final. 

 

Todo o processo mudou a forma da ONU de realizar esses eventos, comumente feitos de portas fechadas. A partir da Convenção, a participação das pessoas com deficiência aumentou na garantia dos direitos humanos dessa população no mundo todo. 

 

O papel da sociedade na garantia de direitos 

 

Para Rosangela, é importante destacar que a inclusão não se refere somente às pessoas com deficiência, mas de todos: “Eu costumo falar que nós, pessoas com deficiência, quando falamos em inclusão, automaticamente estamos falando em deficiência. Mas só nós achamos isso, porque quando se fala de inclusão, você fala de gênero, de raça.” 

 

A líder do Unicef defende que é preciso trabalhar para não haver discriminação em qualquer área, seja de gênero, etnias, raças, LGBTQI+, para que se fale de inclusão de fato: “Se o movimento não estiver associado com todos os outros movimentos pela paz, pela igualdade, pelos direitos humanos, não gera o que tem que gerar”. 

 

Ela reforça que esse é um trabalho permanente e constante de autoafirmação: “Devemos ficar muito atentos a nós próprios, como nós discriminamos quem está do nosso lado. Precisamos nos fortalecer mesmo como raça humana, porque se isso não acontecer, não há inclusão para ninguém, não se erradica a pobreza e não se promovem direitos humanos. Isso tem que ser um processo de desenvolvimento humano levado à escala mundial.” 

 

Rosangela finaliza dizendo que é preciso sair desse ciclo de exclusão para aprimorar a cultura humana em um processo de aprendizagem e transformação: “Essa é a única forma de se chegar, nas próximas gerações, a uma população que esteja preparada para a diversidade”.