Por Marco Pellgrini e Arthur Calasans
Todo mundo conhece aquele amigo ou amiga, vizinho ou vizinha que adora desmontar, consertar, montar e criar novos objetos. Aqui no prédio onde moro, temos o “Seu Anildo”, 82, motorista e mecânico de caminhão, trabalhou durante anos montando e desmontando os enormes motores a diesel dos trucados pelo Brasil. Conta histórias múltiplas. Uma delas, a que eu não canso de ouvir, seu Anildo enche o peito para contar:
“Viajei quilômetros para consertar o caminhão que levava todos os equipamentos e instrumentos do show dos Rolling Stones que se dirigia para Argentina e ficou pelo caminho por conta de uma cruzeta sem manutenção. Imaginem só, Mick Jagger, Keith Richards, Ron Wood e o ainda vivo na época dessa passagem dos Stones pela America Latina, o saudoso Sir Charlie Watts devem esse show, em terras hermanas, ao seu Anildo, meu vizinho.”
Anildo não pode ver um vizinho com um abajur na mão que logo vai oferecendo seus serviços. “Me dê aqui esse troço que já vou arrumar!” E segue paciente e feliz para sua bancada de fios, parafusos e ferramentas, instalada na sala do seu apartamento. Em alguns dias ele devolve o aparelho, objeto ou brinquedo e continua feliz em busca de desafios maiores. Já assisti ele debaixo do carro de um vizinho elaborando diagnósticos mecânicos e se oferecendo para troca de um radiador de um Gol Bola 1995. “Rapaz, deixa que eu faço isso!” diz com orgulho meu vizinho Anildo.
Anildo e o Marco Pellegrini têm muito em comum. Uma oficina em casa, a generosidade e o prazer em ajudar as pessoas com seus objetos, trecos e traquitanas. Marco é o sujeito da experiência das novas invenções e tecnologias assistivas. Braços robóticos, cadeiras que permitem e entregam mais autonomia para as pessoas com deficiência, rampas de acesso para um futuro presente. A oficina da casa do Marco é altamente recomendada para a manutenção de cadeiras automáticas, de suas baterias e de tudo que vem junto com o mundo da acessibilidade e inclusão. Uma parte desta oficina está em sua cabeça onde moram soluções para vida diária e autonomia dele e de milhões de pessoas pelo Brasil.
Nesse texto em primeira pessoa ele nos conta a história dos elevadores e plataformas que foram instalados em sua casa, mas ele nos conta mais sobre esse sujeito que adora desmontar e montar algo novo, diferente e melhor para vida de todos!
Ancestralidade e Curiosidade
Ogum é o orixá da guerra, o guerreiro, e inventou o manejo do ferro, com isso dominou as ferramentas. Como bom filho de Ogum, sempre tive interesse por ferramentas, construir, consertar e customizar sempre foi a minha “vibe”. Carrinho de rolimã, pipa, bicicleta, todos tinham um toque especial.
Na adolescência aumentou o meu interesse por carros e motos, naquela época os veículos da década de 50 eram muito desvalorizados. Por um valor simbólico comprei uma moto DKW 1939 que eu consertava na sala de casa, minha mãe odiou, eu me apaixonei e a molecada pirou.
Dispensável dizer que não parei mais.
O Elevador de Brechó
Eu era frequentador assíduo de feiras e brechós de eletrônicos e equipamento de som antigo, câmera fotográfica, cama articulada, guincho de transferência e tranqueiras em geral. Me deparei com uma plataforma hidráulica e duas eletromecânicas, apesar do pouquíssimo uso o preço foi bem atrativo, os elevadores e plataformas estavam desmontados como sucata, com peças em falta e foram comprados no antigo brechó do Lar Escola São Francisco, hoje conhecido como Bazar Samburá. O Bazar Samburá é o bazar da AACD, incorporado do Lar Escola São Francisco, em 2012.
Eu utilizava uma plataforma industrial que tinha adquirido em uma sucata. Ela atendia os três andares da minha casa mas era muito insegura, uma talha industrial por princípio não deve operar com pessoas. Os desafios foram vários, localizei a empresa que doou os equipamentos para conseguir resgatar a bomba hidráulica extraviada. Consegui os manuais técnicos para refazer o cabeamento e conhecer o esquema elétrico/eletrônico. Foi muito bom receber o apoio de um técnico experiente, o Sidnei, parceiro de primeira.
Aí vem a história e a customização… Eliminei as portas, inverti a cabine, reduzi a estrutura do pé direito de 4 metros para 2,5 m e fiz um buraco unindo as duas salas. Eu busquei simplificar para me dar autonomia e reduzir a necessidade de manutenção ao mesmo tempo em que melhorei a segurança. A plataforma fica estacionada no piso de baixo, quando acionada abre a tampa superior e acontece o deslocamento. Dessa forma não existe a possibilidade de alguém se distrair e cair no vão do elevador por defeito na porta.
Conheça o elevador instalado na casa de Marco Pellegrini:
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Marco Pellegrini é um dos convidados do novo Podcast “Pessoas Incluindo Pessoas”. Não deixe de ouvir aqui no site ou no Spotify do Instituto Paradigma.
Lembram que eram três andares na minha casa? Chegou a vez de desmontar as duas plataformas eletromecânicas para transformar em uma no tamanho que eu precisava. Corta, solda e refaz chicote elétrico e “tchan tchan tchan”, venci o segundo desnível, meio sem graça porque ficou muito convencional, parece com os utilizados em bancos e comércio em geral.
Foram várias as modernizações ao longo desses quase 20 anos, sempre buscando maior autonomia e facilidade de manutenção. Finalizei a etapa mais recente esses dias, no upgrade joguei fora toda a parte eletrônica que estava obsoleta instalando uma solução própria que me trouxe total autonomia com segurança e independência dos fabricantes das placas de controle. Faço tudo no tablet. Eu passo noites com a cabeça a mil, no dia seguinte vou pesquisando e testando a viabilidade. Meus grandes parceiros eram os filhos, mas agora a vida deles anda bem intensa então quem está por perto corre o risco de ser capturado por fios, placas e caixas elétricas prontas para seguir um esquema de montagem que está dentro da minha cabeça.
O pedreiro, a cuidadora, a namorada e até minha mãe já estagiaram na minha loucura. Outro grande parceiro é o Wilton que adora a oficina, toda terça e quinta estamos por algumas horas à noite inventando alguma coisa. Mas só duas vezes na semana não dá conta, afinal temos também um carro de corrida, conserto de cadeira de rodas e etc… Esse upgrade do elevador contou com o apoio dos meus filhos, que seguem a minha trilha na inventividade e nas traquitanas que ganham novas funções e melhorias para todos. Vou te confessar uma percepção que eu tenho. O Pedro, Wilton, o pedreiro Luciano e a Silvânia, entre outras pessoas que convivem comigo sempre tem medo de eu não saber o que estou fazendo. Você que está lendo essa entrevista, se estiver à toa, dá uma passadinha aqui para conhecer a oficina!
Eu deito a cabeça no travesseiro e não paro de pensar em possibilidades e transformações, para minha vida e para vida de muitas pessoas. Hoje eu consigo, mesmo longe da cadeira e do tablet gravar alguma ideia, pensamento e inovação que está passando pela minha cabeça naquele momento. Pra dizer a verdade, é até engraçado, eu ouço vozes!
Eu não sei se o meu vizinho Anildo ouve vozes, mas eu sei que o meu abajur está funcionando muito bem!