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Izabel Maior: “A deficiência é a falta de oportunidade de participação em sociedade” 

Foto: acervo pessoal. Créditos: Izabel Maior

 

Por Elsa Villon

 

Não é possível falar sobre o Movimento das Pessoas com Deficiência sem citar o nome de Izabel Maior. Nascida Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior, no Rio de Janeiro, ela é médica fisiatra, ramo da medicina física e de reabilitação, e tem uma longa história na garantia de direitos dessa população. 

 

Ex-secretária na Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, seu histórico começa muito antes, em 1978, logo após se formar em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Eu fiz residência na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), um centro de reabilitação criado nos anos 1950 onde as pessoas com deficiência se reabilitavam”, afirma. 

 

Seu interesse pela especialização em fisiatria na instituição surgiu no quarto ano do curso, quando ela teve uma lesão medular e ficou sob o risco de não voltar a ter os movimentos por conta de uma cirurgia mal sucedida. Por se tratar de uma lesão incompleta, ela voltou a andar com apoio de bengalas durante 21 anos. “Depois eu tive um outro acidente e, por isso, hoje eu uso cadeira de rodas. Mas eu me dediquei à área de reabilitação justamente porque a própria área de medicina não dava atenção e não tinha profissionais com formação adequada”, relembra. 

 

De paciente a residente, de residente a médica especialista em reabilitação, Izabel passou a trabalhar em todos os tipos de centro de reabilitação, fossem filantrópicos ou governamentais, nas esferas municipal, estadual e federal, além de atuar também como professora da UFRJ. Atualmente, ela é aposentada. 

 

O histórico dentro da área da saúde

Foi após a residência que Izabel e seus colegas perceberam que faltava atenção à reabilitação de pessoas com deficiência dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente depois da Constituição de 1988. 

 

“Existiam outros tipos de tratamento, para questões ligadas à degeneração muscular, artrose, mas não para o acompanhamento de crianças e adultos com deficiência. O trabalho foi esse, junto com os meus colegas, com grupos de São Paulo, de Minas Gerais. E tivemos a oportunidade de trazer então os códigos dos SUS para os atendimentos das pessoas e a concessão dos equipamentos necessários. 

 

Segundo Izabel, na década de 1980, o Brasil não fabricava cadeira de rodas, e todas os recursos assistivos, como próteses e órteses, eram importados. “A ideia foi que nós tivéssemos, no âmbito do sistema público de saúde, o acompanhamento das pessoas com deficiência e todas as necessidades, não apenas na área da deficiência física, mas também aparelhos auditivos, próteses oculares e aquilo que a tecnologia da época permitia”, destaca.  

 

Além disso, ela trabalhou para montar programas com equipes de reabilitação, que até então não existiam, pois o atendimento era isolado: “Você fazia fonoaudiologia em um local, o atendimento de psicologia em outro, de fisioterapia em outro, não havia núcleos de reabilitação. Todo o nosso trabalho na década de 1990 foi fazer com o que o SUS olhasse para essa política de reabilitação das pessoas com todos os tipos de deficiência, que é um grupo muito heterogêneo”. 

 

O trabalho com políticas públicas

 

As dificuldades ao desenvolver políticas públicas para pessoas com deficiência são as demandas, muito distintas entre si, não apenas na saúde, mas também na educação, por exemplo. E que muito depende do acesso às tecnologias: “Elas são necessárias para que as pessoas tenham acesso aos direitos e oportunidades iguais às demais e, para isso, dependem de recursos específicos. É preciso estar cada vez mais ligado à tecnologia do momento para dar respostas às demandas específicas dos diversos tipos de deficiência”. 

 

Izabel comenta que a Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência começou bem antes de sua gestão, como Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), resultante de um decreto de 1986. Com a Constituição de 1988, veio a primeira grande lei que traz um conjunto de ações nas áreas da saúde, trabalho, educação, assistência social e recursos assistivos, ainda não chamados de tecnologias assistivas. A reformulação da coordenadoria aconteceu em 1989, com a Lei nº 7.853. 

 

A médica relembra que assumiu o posto na Secretaria em 2002, a convite de um grupo que já atuava lá, na área de direitos humanos, e ocupou o posto até o final de 2010. Durante o período, com ênfase em 2009, foi possível estruturar a Secretaria para que ela voltasse a ter um número de equipes e pessoas capazes de abarcar o universo da diversidade das pessoas com deficiência. 

 

“Foi possível também ter cargos para que nós pudéssemos convidar pessoas de outras áreas do Brasil, indo além dos grandes centros, mas trazer pessoas da região norte, nordeste, centro-oeste, profissionais com vários tipos de deficiência, para que viessem trabalhar em uma estrutura maior. Aí sim que passa a se chamar Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Essa talvez tenha sido a minha última contribuição”, pontua. 

 

Avanços e desafios nas últimas décadas

 

Para ela, o principal avanço nas últimas décadas foi a noção de que pessoas com deficiência não são pessoas doentes: “Esse é o principal ponto, e que todas as pessoas, não importa o tipo de deficiência, têm direitos humanos”. E, quando diz acesso a direitos, reforça a noção de cidadania e de que os governos têm responsabilidades para com esse segmento. 

 

Em relação aos desafios, a visibilidade e os direitos respeitados pela sociedade são listados pela médica: “O maior desafio é ter a participação social garantida. Para que isso ocorra, é necessário o compromisso no cumprimento da legislação pelos governos, especialmente os municipais”. 

 

Além das barreiras de comunicação, para Izabel, as maiores questões de acessibilidade no dia a dia das pessoas com deficiência estão relacionadas à mobilidade e acessibilidade arquitetônica, como o transporte, as calçadas, as travessias, as escolas acessíveis e postos de saúde: “São de responsabilidade municipal e, algumas delas, estadual. Mas a maior parte é da esfera municipal, tanto do executivo quanto do legislativo, com as câmaras de vereadores”, enfatiza. 

 

Para ela, o que ocorre hoje são as proliferações de projetos de lei que não vão impactar a vida das pessoas: “O que muda a vida das pessoas é o ônibus acessível, o metrô que, no caso, é estadual. São os prédios públicos acessíveis, principalmente as escolas, e também os ambientes de trabalho. Essas questões têm que ser resolvidas: responsabilidade e responsabilização quando os gestores públicos não executam as normas e as leis que dizem respeito à acessibilidade”.  

 

A médica menciona novamente o SUS, que desde a década de 1990 tem a obrigatoriedade de conceder equipamentos de acessibilidade, com auxílio de assistentes sociais em postos de saúdo, graças ao Fundo Nacional de Saúde Nacional, que faz os repasses a níveis estadual, e esse, a nível municipal. “É aí que se faz a partilha de recursos públicos e muitas vezes a área da deficiência, por ser mais enfraquecidas do ponto de vista político, acaba não recebendo o quanto deveria”, comenta. 

 

A importância dos movimentos sociais

 

Outro ponto mencionado pela médica é a importância do fortalecimento do movimento social no Brasil para a redução de barreiras. Para ela, a mobilização perdeu força ao longo dos anos: “As pessoas com deficiência começaram a participar dos governos e, com isso, o espaço social ficou vazio”. 

 

Para Izabel, os conselhos estão muito enfraquecidos: “A área de direitos humanos e de controle social no Brasil, atualmente, está altamente enfraquecida e isso faz com que a gente não fiscalize a execução e implementação das políticas públicas”.  

 

Mesmo assim, ela tem uma visão otimista e afirma que é possível fortalecer essa rede, pois isso foi feito no passado, em tempos de ditadura militar, com a construção de conjuntos de políticas públicas em diversos segmentos e para diversas populações historicamente excluídas, não apenas de pessoas com deficiência, mas de negros, mulheres, idosos e outros grupos. 

 

Ela reforça que é preciso unir tais movimentos para que tenham de novo sua função como fiscais da execução das políticas públicas. E enfatiza: esse trabalho não pode ser feito pelas redes sociais individuais ou influencer sozinhos, mas coletivamente: “Isso é mais um recurso que se soma ao conjunto das oportunidades sociais para que a gente possa fazer com que o governo cumpra o seu papel. Não existe governo sem sociedade e sua função é cumprir as obrigações para as quais foi eleito”. 

 

O legado pelos direitos das pessoas com deficiência

 

Dois pontos na trajetória de Izabel na luta pelos direitos das pessoas com deficiência merecem destaque: o livro e o documentário “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, e sua participação na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU). 

 

O livro e o documentário surgiram da ideia de reunir depoimentos de 25 pioneiros do movimento das pessoas com deficiência, salvaguardando a diversidade, não apenas por tipos de deficiência, mas também de regiões do país. “Esse foi um livro que resgata essa história e eu tinha uma preocupação muito grande, porque é um projeto caro. Toda vez que você vai juntar tantos depoimentos, você tem que contratar uma equipe de jornalistas e historiadores, que fizeram uma revisão do que já se tinha escrito”, pontua.  

 

Ela diz que a maior parte da produção era focada em biografias de pessoas com deficiência, relatórios da área governamental, relatórios das organizações não governamentais e outras tentativas de resgatar todo esse passado das informações, que vão desde a década do Império, quando começaram os institutos de atendimento a meninos cegos e surdos, criados por D. Pedro II na cidade do Rio de Janeiro, capital do Império na época. Já o documentário está disponível no YouTube e conta com legendas, audiodescrição e janela de libras. 

 

A participação na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na ONU é, de acordo com Izabel, uma das maiores experiências da sua vida, por ter feito parte do processo que culminou em uma ratificação e, posteriormente, uma legislação para o país. 

 

“A grande diferença de uma declaração é que você se compromete com determinadas atitudes, mudanças ou políticas. Mas uma convenção é algo que pode se tornar legislação, quando um país assina com a ONU, deposita a assinatura de adesão ao tratado de direitos humanos específico, no caso, para as pessoas com deficiência e, além disso, você pode ratificar. Ao ratificar, significa que também, no próprio país, aquilo passa a se tornar uma legislação”, explica. 

 

Na ocasião, o Brasil estava no grupo de um terço de países da ONU que tinham legislação sobre pessoas com deficiência, pois o assunto foi tratado na Constituição de 1988, na década do Ano Internacional da Pessoa com Deficiência: “Nós havíamos produzido muito material e depois da Constituição, vieram as leis, a Lei de Cotas, de 1991, que trata do mercado de trabalho, as leis de acessibilidade, em 2000. A própria Constituição Brasileira trata das vagas nos concursos públicos e o Benefício de Prestação Continuada (BCP)”. 

 

Para a médica, o Brasil contribuiu muito para o desenvolvimento da Convenção, por já termos muitas leis sobre o tema. E, mais do que isso, a participação evidenciou a importância de um documento internacional mais arrojado e moderno, que falasse um pouco de tudo e trouxesse uma obrigatoriedade permanente de governo, independentemente da gestão. 

 

A LBI e seus atuais entraves

 

Ainda sobre legislação, Izabel destaca a Lei Brasileira de Inclusão, nº 13.146, que determina que, para que as pessoas com deficiência tenham acesso a políticas públicas, elas passem por uma avaliação biopsicossocial, feita por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar. 

 

“Um atestado médico pode dizer que aquela pessoa tem uma alteração da estrutura ou da função do corpo. Mas é o conjunto das informações sobre o aspecto psicológico, social, as condições de vida, o acesso aos recursos, o patamar socioeconômico, tudo isso é visto em um conjunto de informações que vai dizer que políticas públicas determinada pessoa precisa mais ou precisa menos, alguns terão direito a tal política e outros não”, menciona. 

 

Um dos exemplos é o BPC, valor de um salário mínimo oferecido a pessoas em situação de vulnerabilidade social que precisam desse recurso para sobrevivência. Para ela, esta é uma política muito específica e é preciso saber a situação socioeconômica da família. E para isso é preciso ter uma avaliação, assim como a entrada nas universidades por cotas. Nas duas situações é preciso saber se a pessoa tem de fato uma situação de deficiência que faz com que ela precise de algum tipo de ação afirmativa para que ela tenha equiparação de oportunidade.

  

A médica coloca que, para acessar uma política pública específica, é necessária uma avaliação e que esse modelo de avaliação biopsicossocial deveria estar pronto no início de 2018, o que ainda não foi feito. Desta forma, voltam a surgir tentativas de fazer avaliações levando em consideração só a classificação de doenças, o que é um conceito equivocado para ela: “Deficiência não é a doença, deficiência é a falta de oportunidades. Por isso que precisa ser uma avaliação completa”.  

 

Por fim, Izabel destaca que a deficiência não está nas pessoas: “Não é a falta da estrutura ou da função, é a falta de participação em sociedade. Por isso, é necessária uma avaliação global por uma equipe dedicada e capacitada que saiba fazer esse trabalho sem nenhum viés político, mas com uma noção técnica adequada para que as pessoas tenham justiça no acesso aos direitos que estão na legislação”. 

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