Uma história múltipla

Meu nome é Suze Stasi, sou uma mulher com deficiência, convivo desde os meus 29, 30 anos com a Esclerose Múltipla, doença que provoca distúrbios na comunicação entre o cérebro e o corpo. Até o momento condição sem prognóstico de cura. Já se passaram mais de 20 anos de luta. A memória de um dia de sol na Cidade do México está marcada no meu corpo. O calor, a brisa fresca, a areia grudada entre os dedos do pé e algo novo me retirava, removia o corpo de mim mesma. Porém, quem convive com essa ou outra doença sabe que o tempo é marcado por bordas que costuram nossas várias formas de estar no mundo.  No meu caso foi assim que inventei um jeito para não deixar de existir como pessoa, como sujeito e não desistir da vida. A pessoa é para o que nasce, não há receita, não há nada pronto. No meu caso, escolhi diluir essa doença na magnitude do comum, na liberdade do simples exercício da vida.
A escritora Suze Stasi: “tristeza e dor se enfrentam com encantamento.”

 

__Então, compreendeu agora?

__Acho que sim.

 disse a atendente

__Eu acho que não…  Tudo bem, eu explico de novo.

Pacientemente, tirei da bolsa a minha carteira de identidade juntamente com uma cópia de xerox autenticada. Como já estava acostumada com a dúvida estampada nos rostos dos meus alunos, armei-me de calma para explicar algo que eu também não tinha certeza.

__Vocês estão vendo aqui a minha carteira de identidade e na outra mão estou segurando sua de xerox, certo? Pois bem, essa carteira tem informações que servem para me identificar.

Meus parentes começaram a me olhar com certo desespero.

“Muito bem, para esse tratamento, o tratamento da célula-tronco, o que será usado será a cópia de xerox da carteira original.”

Claro que ninguém conseguiu me compreender e, então, joguei-me ao meu próprio desespero.

__Vejam bem, trata-se de uma tentativa para que as minhas pernas voltem a ter passos agora. Trata-se de uma maneira de fazer com que a minha língua volte a ter força suficiente para degustar o alimento, beber o líquido e, por que não… até mesmo voltar a beijar um grande amor ou simplesmente, uma linda ilusão!”

Secando minhas lágrimas, segui com o meu desabafo.

Sou jovem, tão jovem que ainda tenho tempo para experimentar as coisas da vida. Ainda não tive tempo de aprender tudo o que sempre quis aprender , tampouco tive tempo suficiente para me enganar, para tentar e errar e voltar a fazer até…”

Segui chorando. Minha mãe segurava a minha mão e, ainda assim, eu continuei.

“Estou aqui com vocês agora, mas não sou mais a mesma. Estou mas não sou, percebem?”

Olhei bem firmemente para a minha mãe e disse-lhe:

“A minha mão está entre as tuas, eu também sigo com vocês, porém essa mesma mão que a senhora está vendo agora, já não segura a tua com a força de antes e nem eu sou hoje a mesma pessoa que era até pouco tempo atrás.”

“Tenho sorte, tenho uma família que me ama e apoia, porém eu quero mais. Apenas quero seguir com o que sempre foi meu por direito. Quero continuar sendo a mesma Suzette que ria e chorava com a mesma intensidade. Quero continuar tendo ataques ridículos de riso sempre que ligava para pedir uma pizza. Quero continuar virando o meu carro na esquina só para evitar de encontrar com algum ex-namorado. E, por falar nisso, não quero mais ter nenhum ex; quero sempre marcar um cinema com um novo namorado, naquele dia. Já não vivo mais, apenas me recordo. Estou respirando, mas isso não é viver, é sobreviver.” 

“Vocês, queridas primas, tem dificuldade na hora de escolher um presente para mim. E, como não? O que se pode dar de presente para alguém que simplesmente muda da cama de casa para a cama do hospital? Pijama! Eu odeio receber pijama de presente, pois é o anúncio do óbvio. Mas, também podem me dar de presente uma bela roupa íntima, não é mesmo? Não se iludam, pois hoje em dia, apenas uso fralda.”

Nesse momento, joguei-me desesperadamente nas almofadas que encontrei no sofá evitando de vez o carinho da minha mãe.

Eu só queria estar só, pois conhecia muito bem a veracidade daquele desabafo. Com auxílio de uma prima, fui para o meu quarto sob a mentira de estar cansada.

Continuei então com as consultas médicas, exames e internações no hospital no meio da noite. 

Os poucos amigos que conheciam o meu destino foram, aos poucos, distanciando-se mais e mais. Quando ligavam, já não eram mais atendidos por mim e, quando tentavam me visitar, estava quase sempre no hospital ou sem a menor condição para recebê-los. Era verdadeiramente desconcertante estar entre pessoas que seguiam com suas vidas normais, enquanto por diversas vezes, procurava responder às perguntas que me faziam com um simples piscar de olhos. Muito comumente, fingia estar dormindo quando eu me encontrava sem ânimo para continuar tentando ser, porém simplesmente estava.

Eu já não era, apenas estava… até quando?

Quero ouvir de todos os médicos os resultados de todas as tentativas para mais um tratamento, para mais uma tentativa, para mais um dia.  Não aceito mais o consentimento para estar em uma cadeira de rodas, como se a minha condição fosse uma resposta adequada para a pergunta que não se encaixa em nenhum tipo de diálogo.  Busquei tratamentos com as abelhas, com os xaropes e ungüentos, exercícios mirabolantes, médiuns e pagés de diversas tribos ou de países com diferentes culturas. Entre as diversas formas de estar no mundo, uma delas me deixou intrigada, indignada. A mulher com deficiência não tem corpo, não tem identidade, não tem espelho para se ver. Homem cadeirante sem emprego torna-se preguiçoso e por aí vai… A questão é única! Temos pressa de uma união que nunca existiu até hoje. Temos fome de alimento para as nossas almas e não somente as nossas bocas. Temos sede do vinho que brinda a felicidade do simples existir!